PUBLICIDADE

Alfred Hitchcock, o dono do rebanho, e suas atrizes lendárias

Livro esmiúça a relação patológica do grande diretor com as estrelas que ele tratava como gado

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Alfred Hitchcock nunca se conformou com o fato de a mulher que ele havia escolhido para transformar numa estrela, Vera Miles, ter engravidado justamente quando ele se preparava para iniciar a filmagem que vinha preparando com todo cuidado para ela. Vera Miles deveria fazer o papel de Madeleine/Judy em Um Corpo Que Cai (Vertigo). Hitchcock e a figurinista Edith Head planejaram o que seria o guarda-roupa da ?protegée? do diretor. Vera, mãe de dois filhos, engravidou de novo. Hitchcock desinteressou-se dela. Foi a chance de Kim Novak, que apagou o incêndio e entrou, à última hora, numa das obras emblemáticas do cinema. O mestre do suspense tinha uma relação complicada com suas estrelas. Ficou famosa a frase em que se refere aos atores como ?gado?. A mais hitchcockiana das loiras - Grace Kelly - nunca perdeu a majestade pelo que outros (e outras) consideravam desaforo, e numa carta de desculpas a Hitchcock, explicando por que, como princesa de Mônaco, não poderia voltar aos sets de filmagem para fazer Marnie, as Confissões de Uma Ladra, ela se assinou como ?a mais devotada de suas vacas? (the most devoted of your cows). Kim, pelo contrário, foi uma vaca rebelde. Ela detestava os sapatos pretos de salto alto e o tailleur cinza que o grande diretor considerava peças imprescindíveis na criação de sua enigmática personagem em Vertigo. Ela chegou a dizer a Edith Head que jamais usaria aquelas roupas, porque achava que engrossavam suas canelas. Se tivesse de ser um tailleur, que fosse roxo, ou branco. Hitchcock mandou um curto recado à figurinista - "Cuide disso, Edith. Não me importo com o que ela vista - desde que seja um tailleur cinza." Kim terminou usando tudo o que Hitchcock queria - sapatos altos pretos, um tailleur cinza, um vestido preto para noite e um amplo casaco branco. Ao contrário do que ela temia, sua presença na tela exala carnalidade e Kim se tornou uma das imagens mais intensas do erotismo no cinema. Bem vestida, maquiada e fotografada, ela ainda usa aqueles trajes que não parecem datados, 50 anos depois. Hitchcock estava certo o tempo todo e, como o próprio filme, o figurino de Vertigo é eterno. Essa é uma das tantas histórias que Donald Spoto conta em Fascinado pela Beleza. O lançamento da Editora Larousse tem um subtítulo - Alfred Hitchcock e Suas Atrizes. É o terceiro livro que o crítico norte-americano, ex-padre formado em teologia, dedica ao grande cineasta inglês. Em A Arte de Alfred Hitchcock (1976), ele analisou em detalhes os filmes para concluir que o mestre do suspense, com toda a sua fama de cineasta comercial, na verdade foi um dos maiores gênios que já trabalharam no cinema. Sete anos mais tarde, The Dark Side of Genius (O Lado Sombrio do Gênio - A Vida de Alfred Hitchcock), a primeira das 16 biografias que Spoto publicou até o momento, revelou o aspecto mais controvertido da personalidade do artista. Como o próprio Spoto explica no prefácio de Fascinado pela Beleza, "o livro não é uma biografia revisionista, mas, de certo modo, é a história de uma vida com um tema triste - no sentido mais amplo, o tema do egoísmo destruidor. Às vezes, ele (Hitchcock) não podia prever o sofrimento que suas ações iam causar; em outras ocasiões, ele parecia antecipar o sofrimento muito claramente." Além de ?antecipar?, Spoto poderia ter acrescentando que esse sofrimento imposto aos outros causava prazer ao diretor. As mulheres foram os principais alvos da manipulação de Hitchcock. Com os homens, talvez fosse mais difícil ser tão duro e dominador, e com alguns, sem nunca estabelecer camaradagem, ele chegou a trabalhar diversas vezes. Foram quatro filmes com James Stewart, e quatro com Cary Grant, todos com fama de clássicos. As atrizes eram mais vulneráveis porque Hitchcock construía, a partir do material que elas lhe ofereciam, a imagem de uma mulher ideal que ele queria criar na tela. Não deixa de ser curioso que Vertigo, nesse sentido, ofereça uma dupla metáfora. O filme conta a história desse homem que constrói uma mulher a partir de outra para realizar seu sonho de amor necrófilo, indo para a cama com uma morta, como definia o próprio autor. Fora da tela, o próprio Hitchcock esculpiu com uma atriz (Kim Novak) a imagem que havia estabelecido a partir de outra (Vera Miles). Spoto mapeia todas as loiras frias de Hitchcock, esse Olimpo de mulheres belas e gélidas, cuja sensualidade reprimida ele gostava de ver aflorar na tela. O crítico e pesquisador possui uma tese - Hitchcock foi um homem brilhante, excêntrico, torturado e basicamente infeliz, que nos deixou um legado artístico (e agora vem o importante) talvez apesar de si mesmo. O mestre torturava Madeleine Carroll, Joan Fontaine, Doris Day, Eva Marie Saint e Janet Leigh, exigindo delas que encarnassem suas fantasias fetichistas, mas sem nunca dar o retorno se estava satisfeito nos sets de filmagem. Curiosamente, Hitchcock nunca considerou Ingrid Bergman uma de suas loiras, talvez porque a sueca fosse durona (e uma estrela que ele não precisou moldar). Doris Day quase foi à loucura tentando saber se o diretor gostava dela em O Homem Que Sabia Demais ou, em caso contrário, por que não? Janet, imortalizada na célebre cena da morte de Marion Crane na ducha, em Psicose, de 1960, trabalhou menos de 20 dias no filme, mas pelo resto de sua vida seria identificada por aquela obra, embora tenha participado de outros trabalhos marcantes (apenas um exemplo - Sede de Maldade, de Orson Welles). Foram seis dias molhados de um mês de dezembro em que ela ficou horas sob um chuveiro que nunca parava de jorrar água, a ponto de muitas vezes Janet sentir que sua pele murchara. Nunca, como aqui, Hitchcock dirigiu uma atriz com tanta precisão. Ele chegou a dizer a Janet que sua câmera era absoluta. "Conto a história pelas lentes. Portanto, preciso que você se mova quando minha câmera se mover e pare quando minha câmera parar. Tenho certeza de que você será capaz de encontrar uma motivação para justificar o movimento. Estou feliz de poder trabalhar com você, mas sob hipótese alguma mudarei o tempo da minha câmera." A parte mais complexa do livro é a que trata da relação com Tippi Hedren, a modelo que Hitchcock viu num comercial de televisão e a quem transformou em estrela, em Os Pássaros e Marnie. Embora estivesse no auge da sua potência criativa, Hitchcock, aos 60 e tantos anos, mantinha uma relação de dependência com a mulher, Alma Reville. "Ela era como a mãe que cuidava dele", disse certa vez Tippi Hedren. O diretor já tinha 26 anos quando fez o longa The Pleasure Garden, em 1925, no qual uma figurante tinha de entrar no mar. Quando ela lhe disse que não poderia fazer a cena de praia porque ?estava num daqueles dias?, Alma, que desempenhava a função de assistente, teve de puxar o futuro marido num canto e lhe explicar que as mulheres ficavam menstruadas. Hitchcock já sabia tudo sobre técnica cinematográfica e nada sobre anatomia feminina. A Diane Baker, que fazia um papel secundário mas importante, em Marnie, ele confessou, para embaraço da atriz, que havia décadas não fazia sexo com Alma. Pode ser que fosse um sinal de senilidade, mas Hitchcock desenvolveu verdadeira obsessão por Tippi. Ele a isolava, no set, para que fosse somente sua. Não permitia que os atores (Rod Taylor e Sean Connery) a tocassem, exceto quando sua câmera estivesse filmando. Contava piadas sujas e versinhos pornográficos, especialmente depois de descobrir que Tippi detestava esse tipo de coisa. "Acho que ele pensava que isso me deixaria nervosa e embaraçada", a atriz contou a Spoto. A própria Alma Reville visitou a estrela num fim de semana e lhe disse, enigmaticamente - "Oh, Tippi, querida, sinto muito que você tenha de passar por isso - eu sinto tanto." A conivência involuntária da mãezona revelou-se não apenas insensata como inapropriada. ?Seja lá o que ocorreu entre o casal a respeito de Tippi Hedren? - é uma frase de Spoto no livro -, os filmes parece que eram mais importantes e Alma não conseguiu inibir o comportamento destrutivo do marido. Talvez tenha tentado (e falhado). Marnie, com a obsessão de Sean Connery em relação à personagem de Tippi, é um filme sobre Hitchcock e seu desejo pela estrela. Ele não apenas a torturava fisicamente - as cenas de ataques dos pássaros levaram a lacerações reais -, como a humilhou no set do outro filme, exigindo que o tocasse nas partes íntimas. Quando Tippi se cansou e disse que ia embora, ameaçando romper o contrato que a ligava a Hitchcock, ele disse que ia destruí-la em Hollywood e ainda ironizou como ela conseguiria sustentar a filha, a futura atriz Melanie Griffith. É um episódio tão controvertido de assédio que os tietes de carteirinha de Hitchcock preferem minimizá-lo, quando não ignorá-lo. Spoto, que já explorou o lado sombrio do artista, volta à carga. Hitchcock era um gênio, fascinado pela beleza. Criou filmes imortais, em que brilham algumas das mais cintilantes imagens de feminilidade da tela. Só suas estrelas sabem - e Tippi Hedren mais do que todas - quanto sofrimento era necessário para tamanha exaltação da beleza. Todas as "Loiras Frias" do cineasta TIPPI HEDREN: "Assinei um contrato com ela porque ela é uma beleza clássica", Hitchcock disse à imprensa. "Isso não existe mais no cinema. Grace Kelly foi a última." Ao mesmo tempo, Hitchcock pediu a Edith Head que criasse roupas para a vida particular de Tippi. E, em um gesto sutil mas forte para mudar sua identidade, ele exigiu que o primeiro nome da atriz sempre fosse escrito com aspas (um gesto que nunca explicou). Quando as festas de fim de ano chegaram, Hitchcock estava educando Tippi sobre vinho e comida. KIM NOVAK: "Ela chegou com todo tipo de noções preconcebidas com as quais eu não poderia concordar", Hitchcock disse. "Não gosto de discutir com um ator - não há razão para botar os eletricistas no meio. Fui a seu camarim e lhe falei sobre os vestidos e penteados que planejara." Um Corpo Que Cai é um testamento do eterno fascínio de Hitchcock por transformar as atrizes de acordo com seu ideal de perfeição loura. EVA MARIE SAINT: "Agi com ela como um homem rico que mantém a amante", Hitchcock disse do seu trabalho de pré-produção com a atriz em Intriga Internacional, "como Stewart fez com Novak em Um Corpo Que Cai. Cuidei de cada fio de cabelo em sua cabeça". GRACE KELLY: Hitchcock fez 54 anos durante as filmagens. Ele parecia contente em proteger Grace e criar uma imagem de frieza aparente e sensualidade chique, cuja inspiração vinha em parte da própria mulher e, em parte, da intuição do diretor do que ela poderia ser sob sua tutela. JANET LEIGH: "Minha câmera é absoluta", disse Hitchcock a Janet quando se encontraram. "Eu conto a história pelas lentes. Portanto, preciso que você se mova quando minha câmera se mover, e pare quando ela parar. Ficarei feliz em trabalhar com você, mas não vou mudar o tempo de minha câmara."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.