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Arte, aqui e agora

Por que 'Francofonia' é um filme que não deu certo?

Primeiras cenas: "Acho que meu filme não deu certo", diz o narrador via Skype, ao capitão de um barco carregado de obras de arte em mar revolto. Aqui, o diretor Alexandre Sokurov, pelo menos foi lúcido. O seu filme falhou de fato. Do começo ao fim.

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Por Sheila Leirner
Atualização:

Assisti Francofonia: Louvre sob Ocupação, no final do ano passado quando saiu em Paris. Porém, como ele não ficou entre os que guardo na memória por amor, e um de meus leitores pediu a minha opinião, pensei que seria melhor revê-lo.

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Confesso que foram 90 minutos de suplício renovado,  dentro de uma estética (à maneira de) "filme antigo", como quando se utiliza os filtros sépia de PhotoShop. Minha convicção não mudou. Com toda a erudição de Sokurov, o resultado, para mim, não fica longe do kitsch que usa estereótipos visuais para sugerir alguma coisa.

No meio das metáforas peudo-audaciosas (à maneira dos discursos de André Malraux) e das verborrágicas considerações filosóficas e artísticas, a meu ver um pouco duvidosas, os "choques" espaciais e temporais, as experiências pseudo-eruditas, as associações aparentemente "fulgurantes" à la Godard e Chris Marker, tudo isso me deixou novamente aturdida e frustrada.

Espera-se mais precisão, verdade e temperança de uma obra cuja ambição é explorar a relação entre arte e poder e questionar o que a própria produção artística revela sobre um dos conflitos mais sanguinários que o planeta conheceu.

 

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Este filme é a manipulação de uma situação histórica em proveito de uma visão totalmente questionável que o seu autor tem sobre ela

 

Em 2005, o diretor do Louvre era Henri Loyrette. Foi dele a ideia de uma "coleção cinematográfica" que explorasse livremente o acervo do museu. O primeiro filme - Face do tailandês Tsaï Ming-liang - conseguiu ser uma comédia musical simpática e extravagante com Jean-Pierre Léaud e Laetitia Casta. Oito anos depois, eis que sai o filme do russo Alexandre Sokurov, pescado às pressas na saída de Loyrette. O sucessor provavelmente nem sonha em dar continuidade ao projeto...

Francofonia, apesar de seu estranho e inexplicável nome, tinha tudo para dar certo. Sobretudo, um imenso cineasta cuja obra está ligada às artes plásticas e que já consagrou o filme Arca Russa ao museu Hermitage de São Petersburgo, em 2002.

Não havia dúvida, portanto, que este apaixonado pela história e pelo cinema, aluno de Andrei Tarkovski do qual é o mais digno continuador, escolheria uma arte da elegia misturando-a com a sua fibra espiritual-nacionalista. Afinal, russo ele é. Mas a sua meditação trans-histórica me deixa um pouco perplexa...

Por que? Porque este filme, na realidade, é a manipulação de uma situação histórica em proveito de uma visão totalmente questionável que o seu autor tem sobre ela.

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"Napoleão sou eu!"

 

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O Louvre sob a ocupação é tema de uma reconstituição fictícia sobre o encontro entre o conservador Jacques Jaujard e o conde Franz Wolff-Metternich, ex-conservador e responsável da comissão que protegia as obras de arte durante a Ocupação.

A dupla não se entendia sobre o essencial, ou seja como preservar as obras segundo os acordos internacionais, e Wolff-Metternich acabou sendo transferido em 1942. Mas Sokurov, que não teme as fórmulas compostas, pinta um dilúvio de divagações em torno deste tema central. Em alguns momentos, tive vontade de implorar para que ele ficasse quieto e me deixasse olhar as imagens em paz...

Vemos Napoleão, ladrão de obras de arte, que passeia pelo Louvre; imagens de arquivo, o navio na tempestade, o computador no escritório deSokurov, múmias, esfinges egípcias e assírias, Marianne símbolo da França que grita o lema da República; e ainda mais representações, referências e analogias literárias, históricas, artísticas. Até Flaubert está lá, quando Napoleão parafraseia Madame Bovary, apontando a Mona Lisa: "Ela sou eu!" Antes disso, diante da famosa "Coroação" com Josefina, de Jacques-Louis David, ele diz: "Napoleão sou eu!"

Também não poderia faltar a analogia entre o "navio dirigido por Dirk"e uma das mais célebres telas do Louvre: "A Balsa da Medusa". Esta pintura à óleo realizada por Théodore Géricault (1791-1824), pintor e litógrafo da época do romantismo, é mais do que uma obra de arte. Trata-se de uma verdadeira investigação policial e o Museu do Louvre celebra este ano os 200 anos do naufrágio que a inspirou.

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Como diz Jaujard no final: "C'est du délire!" ("É um delírio!"). O movimento é incessante e as voltas inumeráveis. Outra proposta contida no filme pode ser resumida mais ou menos assim: o ocidente cristão, diferentemente do Islão, cultivou a arte  (sobretudo a do retrato) e, partindo do humanismo, soube encontrar - mesmo em sua expressão mais selvagem que foi o nazismo - as fontes espirituais da redenção pela arte. Prova disto: a preservação das obras do Louvre durante a ocupação, o que de certa forma redimiria os nazistas mais sofisticados. Os nazistas, amadores da arte.

 

Os temas alimentam os propósitos de Sokurov porém desonram a compreensão deste período da história

 

Tudo isso, no filme, proviria de dois fatos igualmente bastante discutíveis: o primeiro, de que o Louvre teria sido o centro da cobiça do ocupante em matéria de arte. E o segundo, de que a expressão concreta da barbárie nazista teria se realizado sobretudo por meio da invasão da União soviética.

Ora, o olhar de Sokurov é tão contorcido e seletivo, que ele, como por acaso, omite exatamente o que - em Paris, e precisamente na mesma época - anula tudo aquilo que ele prega no seu filme:  a pilhagem sistemática de obras de arte, associada à deportação e depois à exterminação dos judeus que as possuíam.

A escolha do Louvre, cujas obras eram escondidas na província, e do conde Metternich - que não foi mais do que um personagem de segundo time - alimentam os propósitos de Sokurov, porém desonram a compreensão deste período da história.

Fica de fora a ERR (Equipe de intervenção do Reichsleiter Rosenberg) por exemplo, uma estrutura dirigida pelo ideólogo do partido nazista Alfred Rosenberg, que teve grande parte na espoliação das obras, principalmente aquelas dos colecionadores e galeristas judeus assassinados. São completamente esquecidos Bercy e o Jeu de Paume, onde milhares de trabalhos foram escondidos e onde os maiores nomes do regime nazista brigavam entre si para roubar, com a cumplicidade de certos marchands franceses.

Se Sokurov tivesse levado em conta esta parte horrenda da história e também a dos regimes totalitários em seu país, é bem provável que teria saído do seu filme uma outra moral bem diferente da "redenção da humanidade pela arte e a cultura", a mesma moral que, paradoxalmente, esses regimes aniquilaram de maneira tão atroz.

 

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