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Arte, aqui e agora

EVA ADELE, as "gêmeas hermafroditas" agora em mausoléu

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Por Sheila Leirner
Atualização:

Não, EVA & ADELE não morreram. Hoje, poucos artistas vivos são tão célebres quanto elas. A retrospectiva destas autoproclamadas "gêmeas hermafroditas na arte" no Museu de Arte Moderna de Paris é a sua consagração. Se estão em mausoléu, e me sinto de luto, é porque esta mostra (até o dia 26 de fevereiro) constitui a capitulação final, a renúncia definitiva ao que elas tinham de mais precioso e característico: a sua liberdade.

EVA & ADELE e a sua motocasa, hoje peça de museu intitulada "Biographische Skulptur nç2 B-EA 5800, Camping-car VW" (460 cm x 185 cm x 257cm, 1999-2006). 

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Durante os últimos 25 anos, nenhum evento artístico foi o mesmo sem EVA & ADELE (com maiúsculas como elas fazem questão de assinar). Quando eu não as percebia - fosse em Veneza, Berlim, Kassel ou Lyon - procurava por elas. E se não as visse sentia uma espécie de mal-estar, como se houvesse alguma coisa errada com a exposição. E isso, mesmo sabendo que vinham por conta delas e não como convidadas. Certamente não fui a única. Este par simbiótico, gracioso, quase angelical, pródigo em acenos amistosos, e a sua indefectível motocasa cor-de-rosa que os levava a toda parte, era um acontecimento dentro dos acontecimentos.

Eu amava estas performers. Ainda amo. Não que as ame no mesmo sentido com que admiro certos artistas contemporâneos, mas - para mim - a presença delas tornou-se necessária em vários níveis. Elas representavam a inocência da arte em seu estado puro. Nos asseguravam a continuidade da vida, como se ela fosse perene. E desempenhavam o papel mais importante que pessoas, objetos e ideias podem exercer na arte, que é a "referência". Ou seja, um ponto firme de contato, sem o qual tudo que é móvel e mutante já não pode mais nos assustar.

A vontade de EVA & ADELE contava igualmente e muito. Elas queriam ultrapassar as fronteiras dos gêneros dentro de uma transgressão afirmada. E não apenas em exposições, mas em sua vida cotidiana. Não mudavam o seu estilo e aparência, nem para ir comprar pão. Para o casal, vida e obra formavam uma coisa única e indissolúvel. O que representou também um grande risco à sua integridade física e lhe valeu intolerância, rejeição e até mesmo violência.

A identidade sexual não é uma coisa simples

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Sempre vestidas de maneira idêntica e hiperfemininas, maquiladas com muitos brilhos e o crânio raspado como homens, procuraram demonstrar que a identidade sexual não é uma coisa simples. Que a liberdade e a indulgência também não se obtêm com facilidade. E que nenhuma arte é possível sem a grande qualidade delas, que foi a perseverança em meio a todas as adversidades.

A grande liberdade de EVA & ADELE foi a de sempre recusar todo e qualquer apoio institucional e comercial. Não aceitavam entrevistas, críticas e mantiveram-se voluntariamente enigmáticas, reservadas sobre a sua vida pessoal. O seu conceito artístico nunca mudou: vir de um universo exterior ao da arte, conhecendo perfeitamente os mecanismos do mundo da arte; introduzir uma estética artificial, ligada ao kitsch, ao lúdico, às fantasias sexuais, às heranças do modernismo; romper com a figura do artista solitário, heroico e individualista; não produzir e não gerar discurso teórico ou crítica que pudessem justificar o seu trabalho.

A obra perturbadora de EVA & ADELE nasce sobretudo de uma reflexão sobre o papel social do artista e a sociedade contemporânea. Constrói uma espécie de "escultura social" no sentido de Joseph Beuys cujas performances tinham esse mesmo caráter simbólico, no contato direto com o público, longe da "profissionalização" e "institucionalização" da arte. Tanto que, para sobreviver, estas artistas estabeleceram uma relação de trabalho e cooperação com a população multicultural que habita o seu bairro popular, em Berlim.

Usamos cor-de-rosa porque os nazistas obrigavam os homossexuais a costurar um triângulo desta cor em seus paletós

A identidade simbiótica de EVA & ADELE e seu modo de vida é uma ascese. Sempre gimnocéfalas, mantêm-se fiéis a si mesmas. Levam três horas para se preparar todas as manhãs, raspam as suas cabeças, maquiam-se à perfeição e saem de casa reluzentes e felizes, como de dentro de uma caixa de bombons. As suas roupas e estilo geminados são únicos. ADELE é mulher desde o princípio, EVA é um homem que se tornou mulher. As duas se amam e são de fato associadas em todos os níveis. Sorriem mais do que os outros seres humanos, não apenas porque são felizes entre si. O seu sorriso é a única arma que elas possuem contra a intolerância. "Na maior parte das vezes usamos cor-de-rosa porque os nazistas obrigavam os homossexuais a costurar um triângulo desta cor em seus paletós. Usar cor-de-rosa é uma vingança!"

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EVA & ADELE passeando em Kassel, durante a última Documenta, em 2013. Foto © Patrick Corneau 

 

EVA & ADELE observando a instalação de Kader Attia na última Documenta de Kassel, em 2013. Foto © Patrick Corneau 

Talvez porque goste e sinta ternura por tudo que elas fazem, percorri esta exposição no Museu de Arte Moderna de Paris, com uma certa melancolia, como se fosse uma despedida. Ali são apresentados vídeos, fotos e instalações. Vê-se inclusive a motocasa rosa bombom que elas inauguraram em sua primeira viagem à Grécia. Há algumas roupas, é claro, e 1500 autorretratos realizados, como um ritual, cotidianamente (mesma pose, mesmo sorriso, mesmo enquadramento). Estão também, nas paredes, cronogramas e descrições de todas as suas performances.

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A entidade EVA & ADELE nasceu em 1991. Em 2011 casaram-se após a mudança do sexo de EVA - sem cirurgia, apenas um questionário psicológico de 4500 perguntas e julgamento por especialistas. A Alemanha por causa do seu passado e do fantasma monstruoso de Mengele, talvez, agora facilita bastante esses trâmites. O casamento foi para assegurar o futuro de sua fundação que dará continuidade à pesquisa delas sobre arte e transsexualidade.

Hoje elas estão no porão-mausoléu de um museu pelo preço do reconhecimento

Desde o começo, talvez,já estivessem investindo em seu futuro célebre. O fato é que hoje, o seu trabalho é uma empresa de comunicação artística, com todas as estratégias de marketing. Elas criaram até mesmo um logotipo (o seu rosto, dentro de um coração). Recuperam tudo que é escrito sobre elas para criar a série de telas que chamam de MEDIAPLASTIC e as deslocam diretamente ao mercado. Suas obras bem "materiais" e "duráveis", não as performances, já apareceram na última FIAC, a Feira Internacional de Arte contemporânea de Paris. É um pouco como se fosse um "suicídio" a dois. O casal capitulou, se "institucionalizou", mergulhando de cabeça na podridão do sistema de mercado.

No museu, quase não há cartazes indicando a exposição. É preciso descer vários lances de escada pois ela se encontra enterrada num subsolo escuro e sem janelas. Enquanto Buffet acha-se no alto, em salas nobres, com uma das piores exposições que já vi em minha vida, as performers estão no porão-mausoléu pelo preço do reconhecimento. E me sinto de luto.

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Até a próxima que agora é hoje e adeus EVA & ADELE que amávamos pela liberdade! Como resistir à fama e ao dinheiro? Mas... quem sou eu para julgar?

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 

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