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Arte, aqui e agora

Arte não se ensina

Os artistas se dividem entre aqueles para os quais você precisa lembrar de tudo que aprendeu e aqueles para os quais você precisa esquecer de tudo que aprendeu. Pessoalmente, prefiro os últimos.

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Por Sheila Leirner
Atualização:

Há exatamente 34 anos - tempo que, segundo escreve em sua coluna de domingo, Leandro Karnal é professor - ministrei uma aula como fechamento do curso Introdução à História da Arte no Brasil no MAC/USP em colaboração com o INAP (Instituto Nacional de Artes Plásticas) e a FUNARTE. No final, com a participação da maior parte dos alunos, o artista Ivald Granato realizou um trabalho que interferiu e resultou análogo ao que se chamou, então, de "antiaula".

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Esta "antiaula", dividi em duas partes propositalmente contraditórias de modo que se anulassem mutuamente. Na primeira, tentei uma espécie de distanciamento crítico e histórico, com gráficos e explicações; e, na segunda, com o apoio de 93 diapositivos do acervo daquele museu (pesquisado com a ajuda da historiadora e conservadora Maria Izabel Branco Ribeiro) neguei totalmente essa distanciação em favor da arte pela arte, sem qualquer mediação, explicação ou análise.

"A arte é um modo de conhecimento"

Apenas pedi concentração. A história acompanhamos com facilidade, ARTE exige um pouco mais, disse eu. Arte se faz numa anti-história. Podemos conhecer a arte a partir da arte e nada mais. Podemos conhecer a vida a partir da arte. Porém não podemos, de forma alguma, conhecer a arte por meio da vida. E menos ainda compreendermos a arte por meio de uma suposta "alfabetização para a leitura de imagens", como quer o professor Karnal.

O que ficou para os alunos? Ficou que, acima de todo e qualquer método de ensino está a ARTE. E ela é como o sol. Para sentir a sua presença, não é necessário "educação", "repertório", "adaptação" ou "habilidade". Também não é preciso "julgamento". Basta que nos coloquemos em sua frente. Tudo que está entre aspas, "julgamento" inclusive, naturalmente virá depois.

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Naquela época, Ronaldo Brito, que ainda era um jovem crítico acabara de escrever: "a maneira mais simples, e também a mais comum, de ignorar a arte contemporânea é perguntar o que ela significa. Ou ainda, para que serve." "Essa espécie de questão", disse ele, "pressupõe um lugar qualquer onde se possa - de fora - interrogá-la. Esse lugar seria, naturalmente, uma 'certeza' - o real, o mundo, a vida -, e são essas falsas certezas que cabe à arte justamente recusar... a arte é um modo de conhecimento."

Seria como se Karnal quisesse ver os seus óculos com os próprios óculos...

Como querer aplicar modos de conhecimento a algo que já é um modo de conhecimento? Como elaborar um "manual" pedagógico a priori, se a arte em si é um manual que oferece ao espectador os instrumentos fenomenológicos para que ele conheça a si próprio, o mundo e portanto a arte também? Seria como se Karnal quisesse ver os seus óculos com os próprios óculos...

No entanto, a pedagogia de muitos arte-educadores, assim como o método de "ensino sem adestramento" que defende o professor, é a exortação aos adultos para "educar crianças/adolescentes com vistas à decodificação das imagens, como se os estivessem "alfabetizando para a leitura de textos".

Adultos que, diga-se de passagem, Karnal coloca no mesmo saco junto com os jovens, quando diz que "somos quase todos analfabetos visuais". O que, ademais, implica contradição pois sugere que analfabetos visuais "levem aos museus as crianças e adolescentes imersos no mundo visual, mas inadaptados". Assim, ele gostaria que adultos ineptos "preparassem a experiência", "ampliassem e estimulassem o seu repertório", "dessem informações lúdicas e práticas", deixando os jovens ("que quase nunca tem habilidade e repertório em artes plásticas") "perceberem a cor e a espacialidade". Gostaria também que os seus adultos ignaros mostrassem a seus filhos "como o próprio selfie apresenta uma composição espacial" (!?)

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A verdade é que não existem "analfabetos visuais", nem entre adultos, jovens, crianças nem mesmo entre bebês. Por mais que, no presente, as imagens nos atolem e desviem, não há cartilha ou alfabeto convencionado capaz de ler as linguagens assumidas pela arte. O contato se dá, como nos rituais primitivos. Por iniciação.

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"A rosa não tem porquê. Floresce porque floresce. Não cuida de si mesma. Nem pergunta se alguém a vê..."

Segundo Joseph Beuys todo ser humano é um artista pois a arte (assim como a música) faz parte de nós. Para o aperfeiçoamento visual e artístico, para que "o olhar fique mais sensível e amplo", há apenas um método: não ensinar.

A minha experiência - com a crítica e os leitores, algum ensino, curadoria de duas bienais e algumas outras exposições, o público, uma equipe de montagem e monitores, tudo isso - me ensinou como as pessoas (leigas ou não) reagem. Os cursos teóricos ministrados por Tadeu Chiarelli aos jovens monitores para que estes pudessem conduzir os visitantes nas nossas bienais de 1985 e 1987, por exemplo, eram do mais alto nível. Contudo, foi apenas no contato com as obras e no auxílio de sua construção, junto aos artistas presentes, que aquele monitores foram"inoculados" com o vírus da arte. Práticamente todos seguiram um importante caminho artístico em diversos domínios.

Entre muitas outras coisas, cartas recebidas, etc., testemunhei, outro exemplo, montadores de exposições, sem nenhum aprendizado e informação - apenas pelo simples e íntimo contato com obras de arte - tecerem diálogos, estabeleceram analogias entre trabalhos e revelarem uma compreensão que deixaria muitos eruditos envergonhados. Também vi, há pouco, um singelo "segurança" na Pinacoteca de São Paulo dar um "curso" (totalmente intuitivo e apaixonado) aos visitantes, sobre a sala da qual tomava conta. Eu mesma, ainda criança, fui iniciada pelas mágicas páginas de livros de arte que minha mãe simplesmente folheava ao meu lado no sofá, sem outro intuito se não o de compartilhar comigo o que ela via, em silêncio.

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Outro exemplo ainda é o de Pierre Huyghe, artista presente na próxima bienal de São Paulo, sobre o qual escrevi na semana passada. Terminei artigo dizendo que Huyghe "possui a rara capacidade de provocar suspense, fascínio e curiosidade, fazer pessoas de qualquer classe social, cultura e idade, crianças inclusive, reconhecerem certos elementos que lhes são familiares e - mesmo sem saber exatamente a razão - sentirem que estão vivendo uma experiência excepcional, e em comunhão. Como na recepção de um sacramento, não divino mas, de alguma forma, sagrado." Ora, supor que arte-educação é sempre um "bem" e ensinar os visitantes a "apreciar" Huyghe à "maneira Karnal", seria matar e enterrar Huyghe para sempre!

A "alfabetização" é artificial, impraticável, diante da experiência visceral. "A rosa não tem porquê. Floresce porque floresce. Não cuida de si mesma. Nem pergunta se alguém a vê...". Angelus Silesius (1624 - 1667)

Até a próxima que agora é hoje, e apenas viver e ver arte são mais do que suficientes para nos abrirmos ao que ela tem a nos contar! Arte se aprende. Porém, não se ensina.

 

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