Dizem que o nome do álbum lhe veio num sonho: Songs in the Key of Life, canções no tom da vida.
Quando acordou, Stevie Wonder entendeu que era o nome perfeito para o disco duplo que vinha gravando, para aquelas 21 faixas que tentavam colher em letras, ritmos e melodias toda a variedade de sua vida.
Euforia, fé e indignação. Memórias de infância, de amores perdidos e encontrados. Esperança e desesperança. A paz, a paternidade.
No livro Songs in the Key of Life - Stevie Wonder, o crítico musical Zeth Lundy analisa como esses sentimentos se expressam a cada faixa. E também narra os bastidores da gravação, o processo criativo do artista, o amadurecimento pessoal e musical do cantor, compositor, produtor e multi-instrumentista que inventou uma mistura única de soul, funk, R&B, jazz, gospel e pop.
Stevie nasceu seis semanas prematuro. Um erro na concentração de oxigênio na incubadora o cegou. O "atributo simbólico da cegueira", diz Lundy, aquele imaginário que, desde a antiguidade, diz que são cegos os poetas, os profetas, os visionários, foi explorado pelo departamento de marketing da Motown assim que Stevie assinou seu primeiro contrato com a gravadora, em 1961. Tinha 11 anos e logo virou o herdeiro de Ray Charles, o menino prodígio que perdera um dom para ser agraciado com muitos outros.
Como era menor de idade, o pagamento de seus direitos seria depositado num fundo até que ele completasse 21. Sua mãe ganhava apenas uma quantia para cobrir as despesas: 2,50 dólares por semana (uns 20 nos valores atuais).
Sob o domínio financeiro e criativo da gravadora, Stevie represou o talento que iria transbordar nos quatro discos do início de sua maioridade: Talking Book (1972), Innervisions (1973), Fulfillingness' First Finale (1974) e, finalmente, Songs in the Key of Life (1976).
"Esta seria a última vez que trabalharia tanto", diz Lundy, "entregando um produto que refletia o amadurecimento de seus esforços". Dois anos virando dias e noites dentro do estúdio, tentando eternizar em Songs um impulso artístico que ele próprio sabia efêmero. Tinha 26 anos.
No álbum seguinte, Journey Through the Secret Life of Plants (1979), o impulso já o havia abandonado. Stevie continuou trabalhando e fez praticamente tudo que o tornaria famoso no mundo inteiro pelo resto da vida antes dos 36 - nunca mais com a mesma potência dos 20 e poucos.
Ao completar 68 no último dia 13, foi (pouco) lembrado por seus 25 Grammy, pelos 100 milhões de discos vendidos, por seu ativismo junto ao movimento negro em causas políticas e humanitárias.
Belo material para uma biografia, sem dúvida. Mas não é disso trata o livro de Lundy. Sua versão da vida de Stevie é muito mais uma reflexão sobre o tempo da criação e de quem cria.
O auge da criatividade, diz Lundy, é sempre muito breve: John Coltrane o viveu de 1961 a 65. Bob Dylan, de 63 a 66. Os Beatles, de 65 a 69.
Stevie foi um artista mediano antes de 72 e voltou a sê-lo depois de 76, diz Lundy. Mas, "enquanto se encontrava sob o feitiço desse fugaz período de iluminação, capitalizou sua maré de sorte (sua benção criativa, se preferir) escrevendo e gravando quase o tempo inteiro, e fazendo pouco mais que isso".
Para ele, o jovem Stevie entendeu que vivia um momento raro, que exigia obstinação e sacrifício. E que nunca voltaria.
É por isso que seu livro se abre com versos de Walt Whitman: "Nunca houve mais começo que agora, nem mais juventude nem idade que agora. E nunca mais haverá mais perfeição que agora".
Ouvindo Songs in the Key of Life mais de quatro décadas depois, dá para entender que esse agora - raro, efêmero, pleno de potência - é o instante em que se vive a criação, a inspiração e também os muitos outros sentimentos de toda a variedade da vida.
Para outras histórias e ficções, me acompanhe no Twitter ou no Facebook