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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'X-Men: Apocalypse' é o melhor filme de super-herói do ano... e algo mais: um ensaio sobre o meta-cinema

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Mercúrio (o brilhante Evan Peters) mantém abertos os olhos de Ciclope (Tye Sheridan) no mais provocante filme da franquia inaugurada em 2000 Foto: Estadão

Ilíada mutante, Ilíada de um tempo em crise com o conceito clássico de heroísmo, X-Men: Apocalypse - melhor filme de aventura de 2016 até agora - é rebento do que se poderia entender como o legado nº 1 da cultura digital para a dramaturgia audiovisual: o conceito de meta-cinema.  Filhos do Átomo, os discípulos de Charles Xavier, criados nas HQs por Stan Lee em 1963, tornaram-se cinema como Filhos da Geração DVD. A partir do final dos anos 1990, quando a tecnologia informática permitiu o advento das bolachinhas chamadas de Digital Versatile Disc, toda a memória fílmica produzida no mundo, até aquele momento, encontrou um escoamento (e um veio de preservação) biblioteconômico, que nos permitiu não apenas acesso a cópias, por exemplo, de uma comédia de Harold Lloyd (1893-1971) feita em 1919, mas também a toda uma fortuna crítica (mais contemporânea) sobre ela: os chamado extras. Diferentes do que se viveu na era VHS, todo DVD era um casamento de entretenimento com aula de História, o que alfabetizou uma nova linhagem de cinéfilos e reeducou o olhar dos mais velhos, criando, em ambos, uma percepção de que a realidade - do Presente e do Passado, sobretudo - é mediatizada, ou seja, existe o passado real, concreto, e existe o passado que o cinema nos ensinou. Nossa ideia da Chicago dos gângsters não é a Chicago dos documentos, calcada em fatos: nossa Chicago é a de Brian De Palma em Os Intocáveis. Ou seja... verdade dá lugar a simulacros. E simulacros produzem simulações da vida, ou seja, uma meta-vida, onde imagem não é só um corredor que nos leva a experiências sensíveis: imagem é a experiência em si. E o novo X-Men é uma delas. Das melhores.

Apocalypse (Oscar Isaac) é o primeiro mutante, nascido no Egito dos faraós, que regressa nos anos 1980 convocando jovens poderosos como Tempestade (Alexandra Shipp) para destruir a raça humana e deixar a Terra apenas para quem tem Fator X nas veias Foto: Estadão

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O que a práxis do simulacro produziu foi um meta-cinema. Veja, por exemplo, o caso de alguns de seus maiores artesões. Pedro Almodóvar (Fale com Ela) e Wong Kar-Wai (Amor à Flor da Pele) criaram com base em seu mergulho em mestres do cinema e do folhetim (Vincente Minelli e Douglas Sirk sobretudo) uma ideia de meta-melodrama, ou seja, uma reflexão sobre os sofrimentos do querer calcados não em registros do Real, mas em noções de amar, sofrer, perder e reconquistar que o Cinema ensinou a eles. Já Quentin Jerome Tarantino (Bastardos Inglórios) passou os últimos quatro anos dedicado à lapidação do que podemos chamar de meta-melodrama: os geniais Django Livre (2012) e Os Oito Odiados (2015) não são apreensões reais de questões do Oeste "de verdade", mas sim do Oeste de papelão que Hollywood e os spaghetti italianos nos legaram. São "mentirinhas" erguidas sobre "mentirinhas", ficção da ficção.

O Mestre do Magnetismo: Michael Fassbender é dublado por Alexandre Marconato Foto: Estadão

Embora não tenha - ainda - o peso destes cineastas, mas já tenha um lastro autoral com base na contínua discussão da farsa como prática de sobrevivência, Bryan Singer fez da franquia X-Men a instância do meta: não o meta-quadrinho, mas o meta-filme. Por um bom tempo das quase 2h24 minutos de X-Men: Apocalypse, esquecemos estar diante de um filão consagrado: o "filme de super-herói". Basta dizer que se passam quase 1h30 até que os protagonistas vistam uniformes e máscaras: até lá, são apenas gente... ou super-gente. Diante da luta de Xavier (McAvoy) para entender quais são os planos de um ser egresso do Egito dos faraós, nós nos vemos diante de uma espécie de épico sobre racismo, um novo Exodus, mais cálido e vivo que o dirigido por Otto Preminger em 1960, tendo uma espécie pós-moderna de Paul Newman - o gênio Michael Fassbender - como seu fio condutor de um ensaio sobre esperança. Cena a cena, encontramos uma massa de referências a filmes que pensaram a submissão do Outro (do negro, do judeu, do árabe, do gay) a partir da imposição da força: é possível, a partir de suas sequências visualmente requintadas, traçar paralelos que passam por Acorrentados (1958), de Stanley Kramer, Spartacus (1960), de Stanley Kubrick, e até com o esquecido Gandhi (1982), de Richard Attenborough. É cinema sobre cinema: sua discussão sobre a exclusão é pautada por tudo o que a arte audiovisual pensou sobre o tema. E, por isso, o Apocalypse encarnado com esplendor por Oscar Isaac não é mero vilão e sim um somatório de figuras idealistas que confundem causa com terror.

Olivia Munn é a ninja Psylocke Foto: Estadão

Entre todos os longas-metragens da linha X-Men, Apocalypse  talvez seja o mais bem elaborado na forma, demonstrando a maturidade de Singer como diretor. Não há os solavancos de roteiro que tornavam Dias de um Futuro Esquecido (2014) indigesto e há segmentos de ação generosos em adrenalina, com realce para a breve presença de Wolverine (Hugh Jackman), numa homenagem à HQ Arma X, de Barry Windsor-Smith. Há ainda a consolidação de um jovem ator amalgamado a um personagem de pálida presença nos gibis, mas de potência plena nas telonas: o Mercúrio, encarnado por um Evan Peters em estado de graça. E, de quebra, a identidade autoral de Singer entra em cristalização nas vias do pop. Desde Os Suspeitos (1995), no qual explorava o mito de Keyser Söze como lenda urbana, o cineasta nova-iorquino especializou-se em figuras que inventam histórias para sobreviver. Foi assim em O Aprendiz (1998), no qual o nazista Ian McKellen fingia-se de bom velhinho, ou em Operação Valquíria (2008), no qual oficiais do exército de Hitler enganavam o Früher enquanto tramavam sua morte. Singer se interessa por quem se disfarça para (sobre)viver, como vem sendo a sina da raça mutante.itHitle

Novos mutantes: Ciclope, Noturno e Jean Grey Foto: Estadão

Todo isso posto, entra a Marvel: X-Men: Apocalypse revisita grandes filmes, põe em xeque nossas certezas morais sobre ideologias fundamentalista, afasta-se da cartilha básica dos longas super-heróicos, mas não perde sua função entretenimento. Todo meta-cinema é assim: um bangue-bangue do Tarantino é mais Tarantino do que western, mas preserva os "benefícios básicos" do gênero, ou seja, tudo aquilo que dá prazer a partir de um faroeste estará em Os Oito Odiados. Da mesma forma, ao ver Julieta, delicado olhar sobre tentativas amorosas apresentado por Almodóvar no recém-encerrado Festival de Cannes, é mais Almodóvar do que tudo, um almodrama, mas tem todo choro e vela de um bom melodrama.

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O que se impõe como diferencial - a mais - em X-Men: Apocalypse é a impressão de estarmos diante de uma "aventura falada": palavroso, o roteiro usa muito - MUITO - diálogo, como se fez em todas as grandes histórias em quadrinhos do supergrupo. Mas toda conversação preserva instâncias vulcânicas de ação, numa narrativa que explode na nossa percepção fazendo alguns heróis ou anti-heróis ou vilões crescerem em tridimensionalidade, como é o caso de Magneto ou do jovem Ciclope, encarnado com a carga precisa de rebeldia por Ty Sheridan. Num ano em que a DC Comics reagiu com Batman vs. Superman: A Origem da Justiça, apoiada no niilismo autoral de Zack Snyder, a Marvel se mantém imperial no trono das adaptações de HQ com este novo X-Men que não se rende a briguinhas internas nem a aparições engraçadas. É Cinema com "C". Super... Meta...

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