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'Quase Memória' estreia em abril: nova munição autoral para os fuzis de Ruy Guerra

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Mariana Ximenes cruza a tela de "Quase Memória" em estado de graça: a fábula da arte de perder  Foto: Estadão

Rodrigo FonsecaHomenageado em 2017 com biografias em forma de livro e filme, Ruy Guerra volta aos cinemas no dia 19 de abril, após um hiato de 12 anos longe do circuito, com uma premiada reflexão sobre a permanência: Quase Memória. Esperado há cerca de 23 anos, por marcar um encontro entre um mito das telas (um dos maiores cineastas em atividade do país) com um pilar da literatura (Carlos Heitor Cony, morto no início de janeiro), o longa-metragem conquistou o Prêmio Especial do Júri no Festival do Rio, em 2015, e, desde então, ficou brigando por espaço em circuito. Sua estrutura quase fabular aposta em uma caracterização e uma encenação que estão mais próximas do palco teatral do que da gramática cinematográfica. Desmonta-se o realismo para instalar-se a farsa, em nome de uma trama ambientada em um universo paralelo: o universo da saudade, cuja matéria é a recordação. Nele, as leis da Física obedecem outras regras - a regra do devaneio - o que justifica torções e distorções no Tempo, este todo-poderoso monarca da vida, resultando em um filme filosófico, com visual de cartum capaz de deflagra risadas sazonais.

Frente ao histórico de Ruy, diretor responsável por longas míticos como Os Fuzis (1964) e Estorvo (2000), Quase Memória é um estandarte de autoralidade, que tem - além de beleza de sobra - uma força especial na atuação de Antonio Pedro. É o trabalho mais criativo da longeva carreira do ator, aqui brilhando como coadjuvante. Enche os olhos também a atuação de Mariana Ximenes, como a jovem sonhadora que empenhou seus sonhos em prol de um casamento. Há vigor também no roteiro, que embaralha planos narrativos sem jamais tropeçar em seu próprio arranjo. Competições à parte, é um filme de cinema com "C", em seu mergulho na experimentação e sua aposta no risco, com fôlego para emocionar.

 Foto: Estadão

Se nele existe algum cais de observação da pesquisa narrativa empreendida por Ruy, que sirva como ponto de partida para a compreensão, este seria o encontro entre duas versões de uma mesma pessoa: o jornalista Carlos Campos, vivido de um lado por Tony Ramos (num trabalho mesmerizante) e do outro por Charles Fricks (numa mimetização equilibrada do trabalho do colega). Não se sabe ao certo o porquê de eles se encontrarem na casa do velho Carlos: estima-se ser fruto de uma dobra temporal e estima-se ser um delírio da velhice. Sabem apenas que o motivo do encontro é uma conversa sobre ausência: a falta que o pai, Ernesto, encarnado como maestria por João Miguel, deixou em ambos. A partir daí, eles se embrenham por uma jornada pelo passado, seja o pretérito perfeito do real, seja o pretérito imperfeito da invenção, uma vez que ambos os Carlos, jornalistas, são, no fundo contadores de histórias.

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Sentados em suas poltronas, um paralelo ao outro, reféns da condição de espectador passivo de sua própria história e da História brasileira, Carlos velho e Carlos jovem vão contabilizando os resquícios do pai, Ernesto, em seus feitos mirabolantes, tendo como bússola a fixação deste por balões. Como tudo é farsesco, toda a direção de arte e todos os figurinos, têm um excesso de cores e de detalhes, com exceção do balão que une pai e filho numa cena lúdica - de extrair lágrimas -, usando o objeto voador como metáfora para a liberdade da rememoração. Excessos de tom também marcam as atuações, mas de modo consciente, como comprova o trabalho cativante de João Miguel. Ele faz do personagem do Pai um Forrest Gump, capaz de interferir em episódios importantes da evolução histórica brasileira com suas maluquices.

A reboque de suas peripécias, Carlos vai resgatando os amigos igualmente exóticos do pai. Sua trupe inclui o crítico de teatro Mário Flores (Julio Adrião), o dândi negro Ministro (Flávio Bauraqui) e o velho de farda Capitão Giordano, defendido por Antônio Pedro como um ser capaz de estimular a audácia alheia. Esse exército de Brancaleone injeta humor no filme até que este se encaminhe para uma instância dramática de poesia, quando filho e pai acertam as contas. Ali, Ruy dá a Tony Ramos chance de solar toda a experiência acumulada ao longo de uma vida dedicada a atuação, deixando para o público uma aula de beleza plástica e fé nos poderes autorregenativos do cinema. Ruy é um gênio da tela. Dá gosto ver sua genialidade em exercício.

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