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'Punho de Ferro': um nocaute na correção política

  

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Numa atuação primorosa, contrária aos chavões de gênese heróica, o inglês Finn Jones dá corpo ao herói da exploitation marcial das HQs dos anos 1970  Foto: Estadão

 RODRIGO FONSECANo jogo dos tronos da nova teledramaturgia, rodeada pela névoa da correção política, a Marvel abriu a Caixa de Pandora da dissonância e da transgressão ao trazer para a TV digital em forma de web um super-herói classe B de sua fase exploitation da década de 1970 que foge de todas as convenções inclusivas da contemporaneidade: o Punho de Ferro. Anglo-saxônico, caucasiano, louro, de berço esplêndido, Danny Rand, identidade secreta do ninja branco criado em 1974 por Roy Thomas e Gil Kane, destoa de todos os pleitos éticos de "empoderamento" da cultura contemporânea e, por isso mesmo, sua presença - com destaque - na mídia televisiva, à frente do mais novo (e ousado) dos seriados Netflix, parece tão preciosa. Ele surge como um gesto de incorreção que celebra algo que anda afogado nos atuais debates das redes sociais: "diversidade" é um conceito que vale para TODOS. E este vigilante alourado chega para trazer um justiçamento feito a socos e pontapés, em nome da construção de uma mitologia de traços asiáticos que é a defesa de uma utopia chamada K'un-L'um, a cidade do Bem, na qual a força física se une a disciplinas mentais para afastar as trevas.

Criação de Roy Thomas e Gil Kane  Foto: Estadão

Apoiado no carisma e no talento do ator inglês Finn Jones, o Loras Tyrell de Game of Thrones, a série espatifa as convenções dos mitos de formação de heróis e investe em uma carga de humanização só experimentada antes na série do Hulk, dos anos 1970, com Bill Bixby e Lou Ferrigno. Nos dois primeiros episódios, estruturados a partir de um processo narrativo em low point (na qual o protagonista parece longe de cumprir sua missão, refém de suas fraquezas), Rand é gente como a gente, fraco, apesar de suas virtudes de guerreiro, sem um deus ex-machina que o auxilie. É um processo de busca interna, galvanizado pela escolha de vilões também humanos: o empresário Harold Meachum (vivido por um assustador David Wenham) e seu filho Ward (Tom Pelphrey). As respostas acerca do dilema de ser ou não um guardião da Terra Rand só pode encontrar em si mesmo. E isso preso em um manicômico, à força, por um golpe de seus algozes. E no calvário do isolamento que ele e nós embarcaremos em uma jornada interna, de autoanálise, de imersão no breu. O preço é alto, mas o ganho é justo e enriquecedor, pro espectador e para a dramaturgia, pois vemos um diálogo com uma forma de narrar que parecia perdida lá na TV feita há 40 e poucos anos.

 Foto: Estadão

Psicanálises à parte, temos no seriado espaço para sequências de luta regadas a adrenalia, que justificam a aproximação do produto ao filão "super-herói". Nem sempre a fotografia se ajusta às ambições do diretor John Dahl, realizador de cults como O Poder da Sedução (1994), com a esquecida Linda Fiorentino. Mas a marca autoral dele de partir de uma figura desvalida e esmiuçar seus abismos existenciais conforme narra sua jornada está na tela, com uma grandeza que bobagens como Jessica Jones nem arranharam. Toda a potência do Punho de Ferro dos gibis está na telinha, a começar por uma autoconsciência de se tratar de um personagem de segunda linha, menor do que um Homem-Aranha ou um Capitão América em carga simbólica - por isso mesmo, Rand é pura liberdade. Seu seriado, idem, com destaque para uma genial coadjuvante, aspirante a heroína, a sensei Collen Wing, vivida pela (excelente) atriz Jessica Henwick.

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