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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Première Brasil se rende ao 'Redemoinho' estético de José Luiz Villamarim

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Gildo (Julio Andrade) encara o amigo Luzimar (Irandhir Santos) no olho do "Redemoinho": 9 de fevereiro nas telas  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA

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Pátria de Humberto Mauro (1897-1983), imortalizada nas telas como instância poética de invenção de brasilidade, Cataguases (MG) voltou a ser palco para a transcendência e para a busca de novos rumos narrativos para nosso cinema com Redemoinho, longa-metragem de estreia do diretor de TV José Luiz Villamarim como cineasta, exibido no sábado na Première Brasil do Festival do Rio. Aguardou-se pelo projeto ao longo de dois anos, com ansiedade, desde o anúncio de suas filmagens. Reinava entre as classes do audiovisual a curiosidade de saber como o responsável por hits televisivos como Amores Roubados (2014) e o recém-encerrado Justiça sair-se-ia com outro léxico. E valeu esperar, pois este drama natalino baseado em tramas do segundo volume de Inferno Provisório, a Comédia Humana de Luiz Ruffato, fez jus à expectativa ao iluminar o Cine Roxy com procedimentos de linguagem mais próximos de uma certa estética iraniana que dos filmes do Brasil. Mais do que impactar pela sisudez de uma Minas operária (sem o barroquismo com o qual as Gerais costumam ser retratadas), a produção impactou por uma estrutura de roteiro sofisticadíssima. Na dramaturgia de George Moura o eixo central - o reencontro de dois velhos amigos - é arejado por microsituações que lhe servem de satélites, estruturadas simbolicamente quase como flashes do correr da vida, algumas servindo para esclarecer dúvidas, outras abrindo caminhos autônomos, num processo de diálogo com a prosa de Ruffato.

 

É o silêncio que reina senhorial nesta narrativa, na qual a direção de fotografia feita por Walter Carvalho (talvez a mais ousada de sua carreira, em anos recentes, desde Baixio das Bestas) dá tanto valor a rebites de pontes e a ribanceiras quanto à gente ao seu redor. É um filme de clima, de construção climática, onde as revelações do enredo chocam menos do que os desabafos de inquietação frente a um lugar onde o Tempo escorre pela chuva que esfria ímpetos de renovação. É também filme de assombração, pelo fantasma de um menino morto que pesa no mormaço local. Mas não é um filme de causalidade: no ritual de observação orquestrado por Villamarim a partir das palavras de Moura e das lentes de Carvalho as ações não correm em P.A. (progressão aritmética) nem P. G. (progressão geométrica), pois, nem sempre, um fato deflagará outro, nem sempre uma ação esperará reação.

Ali é Minas. Uma Minas secular. Uma Minas que não sem pressa, pois viciou-se na segurança da rotina. Uma Minas vista de seu ventre social, mas sem uma politização. Vimos nos últimos dez anos aquele estado renascer nos experimentos nas franjas de uma certa videoarte, com a produtora Teia, com A Falta Que Me Faz (2009), de Marília Rocha, com as ruminações de Girimunho, de Clarissa Campolina e Helvécio Marins Jr. Mas há nas Gerais de Villamarim uma mistura ardida de metafísica e carnalidade, de ausência e de pertença, de pouca metáfora e muita metonímia: temos partes representando o todo, vestígios indicando onde estão os cadáveres de sentido. E temos uma das cenas mais belas do nosso cinema, na qual Camila Amado deposita em águas egressas do leito do Rio Pomba flores para o filho morto, pedindo para que ele volte.

Walter Carvalho fotografa Cataguases com o mesmo peso que dá aos personagens centrais Foto: Estadão

Numa genealogia cinéfila, o parente mais próximo de Redemoinho, no discurso e na investigação de mundo, seria o italiano As Maravilhas (2014), de Alice Rohrwacher, sobre uma família de genes etruscos. Mas a gente pisa, com Villamarim, em um chão esturricado que lembra o do Irã que o cinema de lá nos apresentou.

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É difícil não pensar no Jafar Panahi de Ouro Carmin (2003) ao acompanharmos as andanças do que parece ser o protagonista, o operário Luzimar (Irandhir Santos), da tecelagem onde bate ponto até sua casa, onde a mulher (Dira Paes) o espera com a ceia de Natal e com um segredo. Mas no meio de seu caminho há uma pedra, Gildo (Julio Andrade), amigo das peladas de infância, ligado de alguma forte à perda do tal menino, da qual se sabe bem pouco (e da qual saberemos apenas o necessário para galvanizar a sensação de nó na garganta de todos). Gildo convida Luzimar para uma cerveja e dela outra e outra e outra numa sucessão de goles para regar a necessidade soterrada de ambos de deixar as angústias tomarem um ar.

Mas não espere soluções, nem mistérios, nem conflitos redefinidores. Redenção é uma palavra absoluta. O mundo de Ruffato, não: é provisório ao pé da letra. Absoluto, em Redominho, só se manifesta em dois pontos. A) Na certeza de que dois dos maiores atores deste nosso país (Irandhir e Andrade) vão entregar o melhor de si num embate que não fala a língua da dialética, nem da retórica: são os instintos primais que darão as cartas ali; b) Na percepção de que Villamarim teve uma estreia apoteótica, lançando-se como realizador no ápice da forma e da fome, permitindo uma reinvenção contextual a um planisfério que nos deu O Padre e a Moça (1965), A Casa Assassinada (1970) e Cabaré Mineiro (1979), entregando algo que parece, à primeira vista, um filme definitivo sobre alguma coisa que finge ser amizade, mas se chama rancor.

"Divinas Divas": álbum de família aberto  Foto: Estadão

Também neste sábado a Première perdeu o rebolado com outra estreia: a premiada atriz Leandra Leal passou ao posto de diretora com o .doc Divinas Divas, retratando um encontro das estrelas do travestismo no Brasil, como a todo-poderosa Rogéria e Eloína dos Leopardos. Bem mais do que ensaio antropológico sobra as raízes de uma cultura trans, a léguas de distância da alteridade, o filme é uma investigação sobre a importância do Teatro Rival, no centro do Rio, como um lugar transgressor na saga LGBT nacional, servindo de palco de igualdade ao longo da História das artes cênicas no país. Como o teatro foi do avô da estrela de Lobo Atrás da Porta (2013) e passou para sua mãe, a abordagem que Leandra faz dele acaba se alinhando como a corrente documental latino-americana chamada de Álbum de Família, na qual diretores abrem suas memórias clânicas mais pessoais. Fora sua generosidade, que rende banhos de descarrego sucessivos na tela, o longa se beneficia de uma engenhosa fotografia, assinada por David Pacheco.

 

Em linhas gerais... tá boa demais esta Première.

     

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