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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Nas asas da invenção, uma gaivota encanta olhares no Festival do Rio 2015

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Cena de "Olmo e a Gaivota" com os atores Olivia Corsini e Serge Nicolai do Théâtre du Soleil Foto: Estadão

Fato ou faz de conta, fingimento ou espontaneidade, encenação ou vivência: tudo isso se mistura numa liga inoxidável em Olmo e a Gaivota, produção mais comentada (com expressões do tipo "Que fofo!" ou "Como é lindo!") entre os documentários (se é que esta é a melhor taxonomia para o filme) em concurso na Première Brasil do Festival do Rio 2015. Sua exibição, na noite de quarta, foi um evento, pois deflagrou um boca a boca dos mais quentes de todo o evento na tentativa de: a) decifrar a natureza do dispositivo narrativo armado pelas diretoras Petra Costa e Lea Glob; b) expressar o encantamento diante de uma reflexão sobre as vicissitudes da vida a dois, ou, no caso, a quase três, pela chegada de um bebezinho, batizado na tela de Nino. Seus pais são dois atores do Théâtre du Soleil: Olivia Corsini e Serge Nicolai. E a rotina apaixonada deles se rende à chegada do primeiro filho no momento de uma virada profissional para ambos: uma encenação de A Gaivota, de Tchekov, nos EUA. Como Olívia vai fazer, com seu barrigão em expansão e com os riscos de aborto gerados por um hematoma no útero? Essa é a investigação proposta pelo filme, coproduzido pelo ator americano Tim Robbins (de Bob Roberts) e pela produtora escandinava Zentropa, lar de Lars von Trier.

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Vitaminada pela fotografia de Muhammad Hamdy, a imersão do longa na intimidade de dois amantes em choque frente ás expectativas do futuro rendeu a Lea e sua colega brasileira (Petra é a diretora do sucesso de público e crítica Elena, de 2012) o prêmio do Júri Jovem no Festival de Locarno, na Suíça, em agosto, e mais duas láureas no CPH:DOX, da Dinamarca, em novembro de 2014, antes da conclusão do projeto. Na versão exibida no Rio, as realizadoras dão tempo para o público trafegar pela casa (e até pela cama) de Olivia e Serge a fim de nos deixar conhecer como eles dividem os sonhos e as ambições profissionais, como eles pensam o teatro e a própria relação de amor, e como encaram a paternidade. Mas tudo isso é mediado pelo veto iminente de Olívia estar nos palcos, por ordens médicas, em prol do bebê.

"Conheci Olívia um mês antes das filmagens e vi que ela queria fazer um filme comigo, motivada pelo que sentiu vendo Elena", lembra Petra, que encantou a Première pela leveza impressa em sua estrutura narrativa de observação e de sazonais interferências, numa poética envolvente. "Ao nos conhecermos, partir do princípio de que usaria a ficção como moldura para olhar para o cotidiano da vida de uma mulher. No filme, a ficção serve como esqueleto e a carne é a vida".

A atriz nos bastidores de uma peça Foto: Estadão

Não se sabe, ao certo, onde Olívia está encenando e onde Serge está sendo ele mesmo. São atores. Dois grandes atores, num balé entre o que é íntimo e o que inventado. De concreto há apenas o bebê e a proibição de a atriz pisar no palco durante nove meses. O resto é figura de linguagem: metáfora, metonímia, elipse. Tudo em prol de cenas de romance e renúncia, tendo em sua órbita o satélite Lea e o satélite Petra, que, numa cena hilária, interropem uma D.R. do casal para pedir que eles mudem seu próprio tom de ser.

"Ali, ao interferirem na relação, as diretoras viram terapeutas de casal, numa solução narrativa que emociona muito", dizia o documentarista Paulo Henrique Fontenelle, diretor de sucessos como Lóki (2008) e Cássia Eller (2014), ao fim da projeção. "A angústia da atriz de não poder mais atuar é superada pelo próprio documentário uma vez que Petra e Lea fazem o casal atuar. E isso numa montagem espetacular".

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Com toda a sua exuberância, o filme de Petra se impõe entre seus pares de não-ficção, sendo ombreado pelo tratado político Cordilheiras no Mar: A Fúria do Fogo Bárbaro, de Geneton Moraes Neto, sobre a aproximação do diretor Glauber Rocha com os militares nos anos 1970. Enquanto isso, na ficção (100% ficcional) nada supera Boi Neon, de Gabriel Mascaro, (nem seu protagonista, Juliano Cazarré, numa atuação pancreática de tão visceral). Depois dele, o segundo melhor longa da disputa do ano, até agora, é Nise - O Coração da Loucura, no qual Roberto Berliner dá uma aula de maturidade construindo uma espécie de épico sobre as instâncias psiquiátricas brasileiras. Mas ainda tem muita coisa (sobretudo Quase Memória, do mestre Ruy Guerra) pela frente. 

p.s.: Anote aí um nome na lista de potenciais reinventores de narrativas no cinema brasileiro: Felipe Rocha. Mais conhecido como ator, ele se arrisca como diretor na experiência mais radical (até agora) em curta-metragem do Festival do Rio 2015: a comédia sinestésica Som Guia. Com um elenco de dar inveja a muito longa, pilotado por  Enrique Diaz, o filme faz blagues com as noções de sensorialidade no (e do) cinema, adotando como foco a falta de sincronia sonora entre labiais e palavras. A partir dessa brincadeira, o dire-a-tor parte para um jogo de sedução, que evolui para uma briga de casal (entre Enrique e a valquíria pós-moderna Mariana Lima) de dela para uma vida a dois, com filha e problemas de miopia. Tudo isso se expressa entre elipses, tiques de microfonia e trocas de foco, que, juntos, dão margem para uma investigação sobre a invisibilidade, feita com bom humor e esmero plástico, na fotografia de Mauro Pinheiro. Filmaço!

 Foto: Estadão

Cena do curta-metragem "Som Guia", de Felipe Rocha: o melhor do formato na Première Brasil 2015 até agora

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