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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Mostra de críticos no CCBB homenageia Hector Babenco

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Willem Dafoe ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Montreal por "Meu Amigo Hindu", o derradeiro trabalho de Hector Babenco na direção  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECAResponsável por uma desconstrução do realismo no cinema brasileiro, mesmo tendo gênese na reflexão social mais pé no chão, Hector Babenco (1946-2016), que se foi cedo demais no torvelinho das perdas do ano passado, será homenageado na mostra anual da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro, a ACCRJ, que começa nesta quarta, dia 18, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB-RJ), e segue até o dia 6. Será projetado o último longa-metragem do cineasta argentino naturalizado brasileiro, Meu Amigo Hindu, com sessão no dia 30, às 16h30. O evento reúne os melhores filmes lançandos entre dezembro de 2015 e novembro último.

Isabelle Huppert no premiado longa "Elle"  Foto: Estadão

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Laureado com o Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro no domingo passado, Elle, o polêmico thriller do cineasta holandês Paul Verhoeven, foi eleito o melhor de 2016 e será exibido já na abertura, na quarta. Já o melhor longa brasileiro ficou com o libelo político Aquarius, dirigido pelo cineasta pernambucano Kleber Mendonça Filho. Além deles, serão apresentadas criações recentes de Woody Allen (Café Society), Quentin Tarantino (Os Oito Odiados), Jafar Panahi (Taxi Teerã), Charlie Kaufman (Anomalisa), Todd Haynes (Carol), Jia Zhang-ke (As montanhas se separam), Hong Sang-soo (Certo agora, errado depois) e Béla Tarr (O cavalo de Turim). As escolhas da ACCRJ também prestigiaram os iniciantes Robert Eggers (de A Bruxa) e László Nemes (O Filho de Saul).

Cada dia tem um par de filmes, com debates espalhados pela programação. Para os dias finais, ficou o tributo a Babenco e seu canto de cisne, sobre o qual há muito a ser dito...

Perpétuos, Morte e Delírio compartilham a mesma inicial - a letra "D" - quando escritos em inglês, o idioma de Meu Amigo Hindu, o novo (e obrigatório) longa-metragem de Hector Babenco. Esses verbetes viram Death e Delirium quando ditos por bocas como a do americano Willem Dafoe, ator a quem o cineasta confiou o protagonismo deste seu mais recente filme. Ele inclusive ganhou o prêmio de melhor ator no Festival de Montreal por seu desempenho. Mas, fronteiras linguísticas à parte, essas duas palavras míticas - onipresente nos filmes de Babenco - se conjugam no esperanto da dor dicionarizado pelo diretor ao longo de 124 minutos esculpidos com suas entranhas e suas recordações mais íntimas. É uma radiografia da alma do homem que, em 1986, concorreu ao Oscar de melhor direção por O Beijo da Mulher-Aranha. O importante agora é saber o que o cinema fará com ela. Saber que conexões traçar com a filmografia de seu criador e de outros com quem ele dialoga. Pois o que ele fez foi uma autopsia em corpo vivo.

 Foto: Estadão

Filmes sobre calvários de saúde já fizeram a roda do cinema andar algumas vezes. Foi o que se viu quando, em 2005, o romeno Cristi Piu lançou o nigérrimo A Morte do Sr. Lazarescu, seguindo um idoso em deterioração. Há uma patologia igualmente incômoda no francês Abus de Faiblesse, de Catherine Breillat, no qual a diretora espelha no corpo da ruiva Isabelle Huppert o derrame que sofreu. O que se deteriora em Meu Amigo Hindu é o organismo de Diego Fairman, cineasta vivido por Dafoe (numa atuação visceral), em função de um linfoma. A doença foi a mesma que botou Babenco em estado de risco nos anos 1990: logo no início do longa, uma cartela de texto indica que as experiências ali narradas foram testadas na pele do próprio Babenco. Fala-se, por isso, que Diego é seu alter ego. Mas é tolice reduzir o filme a esse âmbito autobiográfico. Não importa o que se deu na vida de Babenco. Importa sim o que esse novo espelha de sua obra, de sua cinematografia.

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Por isso, vale retomar como bússola nossos Perpétuos Morte e Delírio, inteligíveis em qualquer língua. Em todos os filmes feitos pelo cineasta em seus 40 anos de caso com a ficção, eles estão presentes, desde seu primeiro longa, O Rei da Noite (1975), no qual o protagonista sonhava uma vida alternativa para se entorpecer de seu crime. Basta lembrar que Molina (William Hurt), de O Beijo..., inventava um mundo paralelo com os cacos dos clássicos do cinema a que assistiu para não se sufocar com a cadeia. E é na boca de O Beijo... que Babenco vai buscar a saliva para umedecer o relato da luta de Diego para viver.

 Foto: Estadão

De solidez invejável como drama, Meu Amigo Hindu caminha a partir de sequências entre o tormento e a bonança: algumas que doem, outras que aliviam. A festa de casamento de Diego e Lívia (Maria Fernanda Cândido) e o ajuste de contas entre ela e o cunhado Antonio (Guilherme Weber) tateiam a laje do desastre iminente, deixando na plateia a sensação de uma erupção de rancor a qualquer instante: o que eleva a temperatura e o senso de risco. Já as cenas todas nas quais Diego lida com o menino indiano que dá nome ao filme (vivido por Rio Adlakha) caminham pela planície do lirismo, para dar de comer à porção delirante que alimenta a fauna do cineasta. Há ainda as tomadas de excelência com "E" maiúsculo nas quais o genial ator mineiro Selton Mello põe o longa no bolso contracenando com Dafoe de igual para igual na pele de um sujeito misterioso, chegado de um Além ateu, com quem Diego joga xadrez em alusão a O Sétimo Selo (1957), de Bergman.

Aliás, alusões cinéfilas o filme tem de sobra, alguma conscientes, como na cena em que Babenco veste um corpo feminino com saudades de um musical clássico. E há as inconscientes: o filme tem um odor de morte que lembra Trinta Anos Esta Noite (1963), de Louis Malle. Nessa mescla, entre o que foi sabido e o que é intuído, conta mais uma epiderme em tons de marrom e vinho, as cores primárias do alfabeto plástico de Babenco, na qual o cineasta cobre cada plano, de modo a traduzir em imagens o quão rascante é o espírito de seu personagem.

Num elenco estrelado, Babenco rende loas ao melodrama e à comédia burguesa, mas, com a atriz Bárbara Paz, ele dá ao terço final um fôlego digno dos grandes romances de Kim Novak. Magistral, Bárbara faz lembrar Novak no melhor de si em Férias de Amor (1955). Ela alimenta o apetite artístico de Diego.

A arte desse personagem, defendido com fibra por Dafoe, vira um amalgama com a arte de Babenco: basta a cena em que o personagem interrompe a oração de uma morena de vestes indianas tirando sua roupa para que se perceba o quão feroz é a poética de Meu Amigo Hindu. Diego não é Babenco. Diego é um além-Babenco: personagem dos grandes que fica para o cinema brasileiro como uma aula de autogeografia: a partir dele, fala-se do relevo que nossa cinematografia criou e consumiu a partir dos filmes que o argentino rodou de Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia (1977) para cá. A partir dele, Meu Amigo Hindu vem dizer que Babenco é eterno.

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