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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Micareta da Autoralidade: Luiz Rosemberg Filho é sinônimo de cinema de esplendor

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Patrícia Niedermeier e Ana Abott estrelam "Guerra do Paraguay", obra-prima de Luiz Rosemberg Filho Foto: Estadão

Foi um negócio mais ou menos assim, ó: um carro de som parado aqui pela Rua Quito, na Penha (subúrbio e cantinho do Céu do RJ), berrava o axé chiclete de Bell Marques, esporrando o verso alexandrino "Ô, mainha/ Eu também gosto de cabelo de capinha", enquanto uma cópia ainda não finalizada de Guerra do Paraguay carregava no Vimeo. O batuque do lado de fora botava qualquer trio elétrico de Salvador no chinelo, indo de Araketu a Ivette. Confete é confete: pedadinho colorido de saudade. Então tá de boa os decibéis a mais desse mara-mara-mara-maravilhaê. Mas bastaram poucos minutos do filme de Luiz Rosermberg Filho para que o a-e-i-o-u da folia parecesse inaudível e que todos os sentidos se transportassem para uma imersão radical, para um transe poético que só grandes filmes podem causar. E Rosemberg sempre foi bom nisso, vide A$$untina das Amérikas (1975). Mas o diretor se superou nesta espécie de Viagem do Capitão Tornado sul-americana e brechtiana.

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Redescoberto pelo planisfério cinéfilo brasileiro desde a projeção de Linguagem em Recife, no Cine PE, em 2014, sendo alvo de retrospectivas, livros e homenagens mais do que merecidas (por sua coragem e, em primeiro lugar, por seu legado visual), Luiz Rosemberg Filho faz em Guerra do Paraguay uma espécie de tratado metafísico sobre a inutilidade da morte nos campos de batalha. De um filme que abre e fecha com poemas, indo de Mario de Andrade a Maiakovski, só se pode (e se deve) esperar um descompromisso com as convenções narrativas de jornadas heroicas e de plenárias discursivas. A expectativa se concretiza: numa suspensão de pactos de descrenças, na traição ao realismo, uma jogabilidade estética teatral, brechtiana no verbo e alegórica na forma, desenha-se diante de nós, com quatro atores em afinação máxima. Patrícia Niedermeier, Ana Abott, Alexandre Dacosta (soberbo) e um Chico Diaz semimascarado como "o homem que sangra" vociferam traumas em palavras e grunhidos. Traumas da latinidade, traumas do Brasil, com suas exclusões e contrarreformas de terra.

Chico Diaz: o homem que sangra... e faz pensar Foto: Estadão

Já não se ouvia mais o pancadão do Psirico e seu Lepo-Lepo na Rua Quito quando a trama do longa-metragem se fez entender: a Guerra do Paraguai chegou ao fim e os trapos humanos que dela sobreviveram contam os saldos do conflito para entender se a luta valeu a pena e se há ainda alguma luz a iluminar o túnel de possibilidades políticas à frente deles. Não por acaso, o cineasta escolheu filmar em preto e branco: no furor do combate, tudo é monocromático, tudo é sangue, tudo é ódio. Vinícius Brum fotografa uma paisagem campestre com uma rigidez de enquadramento espartana: a câmera, refém do horror, paralisa-se diante da desesperança. À frente dela, vemos um soldado brasileiro que bate seu tambor comemorando a derrota dos paraguaios (Dacosta, cuja face ganha contornos quase caricatos para debochar do real devastado). Este cruza com um esfarrapado ferido (Diaz) que nos mostra o quanto o Brasil dos 1800, imperial, é parecido com o Brasil da Dilma, sem ir contra, sem ir pró. É observação, não adjetivação. A conclusão é nossa: Diaz só faz ferir os paroxismos da atuação naturalista contemporânea, numa composição quase clownesca, felliniana.

No Satyricon de Rosemberg, o soldado Dacosta vai se surpreendido por uma visão do Belo - ou do que sobrou de Beleza após a ruína causada por canhões e fuzis - na pele de duas beldades: duas artistas de rua, uma verborrágica Ana Magnani de beira de estrada (Niedermeier, grandiosa) e uma murmurante doente mental (Abott). Lindas, cúmplices, fogosas, elas são as sobras da vitalidade de um universo que se banhou em coágulos derramados sem entender a razão. Para as duas, as causas do Brasil disparar contra o Paraguai não são claras. Menos claro ainda é o que ganhamos com esses disparos. Dacosta poderia ter essa resposta. Mas num diálogo (daqueles de a gente ver com caderninho, anotando palavra a palavra) sobre a analogia entre uma farda militar e uma batina, percebe-se que o soldado não sabe também por que raios sangrou.

Desvalidos do Império em conflito neste "Satyricon" nacional Foto: Estadão

Tudo parece se caminhar para uma homilia de cerca de 78 minutos sobre barbáries e utopias possíveis até que Rosemberg nos dá uma rasteira e, valendo-se de imagens de arquivo, lembra-nos de que o lobo do homem veste peles de cordeiro de grifes das mais distintas. Nesta operação, em homenagem assumida a Jean-Luc Godard e a Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, o realizador de Crônica de um Industrial (1976) mostra o poder autorregenerativo de um projeto artístico reconhecido desde os anos 1970, que agora, em parceria com novos talentos (a começar do produtor Cavi Borges), faz sua passagem para o pós-moderno, afinando-se com as angústias das novíssimas gerações. E isso se dá talvez porque as azias do Brasil de hoje, no torvelinho da História, sofram do eterno retorno das azias de ontem. Brincando de Nietzsche, Rosemberg faz uma genealogia da Moral brasileira, endurecendo carvões sob a forma de um filme com brilho de diamante.

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E o carnaval só começou...

 

 

 

 

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