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'Lavoura Arcaica' completa 15 anos... e segue arrebatador

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Selton Mello e Leonardo Medeiros em "Lavoura Arcaica": prêmios em Biarritz, Montreal, Trieste Foto: Estadão

Responsável pela formação de gerações e gerações de cabeças pensantes em suas aulas de Estética e Cultura de Massa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o filósofo Juvenal Hahne me deu de presente ontem uma tarde de conversa boa, no café do Espaço Itaú, sobre Velho Chico, novela a qual acompanha com entusiasmo, afoito pela experimentação visual do diretor Luiz Fernando Carvalho. Na conversa, Juvenal ressaltava a coragem de se fazer uma novela capaz de espremer as pústulas do Brasil neste momento histórico de crise. "O texto é de uma contundência que não se vê todo dia", dizia ele, em digressões hegelianas levantadas pelo folhetim. E, em meio ao papo, chegamos à recordação de que Lavoura Arcaica, único longa-metragem concluído por Luiz Fernando, completa 15 anos este ano, em novembro. É de 2001, quando ganhou o Grande Prêmio do Júri no Festival de Biarritz, na França, e iniciou uma carreira coroada com 50 láureas internacionais, incluindo o troféu Candango de melhor filme em Brasília (empatado com o doc Samba Riachão).

Dizem que quem lê Marcel Proust e se apaixona por sua maneira habilidosa de brincar com a cadência da memória toma porre e fica, eternamente, curando a ressaca sinestésica de sua cachaça literária. Lavoura Arcaica tem efeito parecido. Tanto em relação ao livro, de Raduan Nassar, quanto ao filme, de Luiz Fernando Carvalho. Especialmente este último provoca um misto de euforia e desalento, quase como em um paradoxo. E as duas sensações são afluentes de uma mesma e caudalosa água: a liquidez da transgressão. A euforia se dá pelo fato de o choque estético causado pela prosa de Nassar em Luiz Fernando ter conduzido o cineasta a filmar da maneira mais pessoal possível, sem fronteiras mercadológicas e sem compromissos teóricos. A razão do desalento: a incômoda impressão de o longa-metragem parecer uma obra isolada dentro da cinematografia nacional lançada de 1995 para cá.

 Foto: Estadão

O trabalho de Luiz Fernando talvez constituísse uma exceção mesmo na pangéia latino-americana se não fosse a exibição do corajoso Hamaca Paraguya, de Paz Encina, no Festival de Cannes de 2006. Acidente, uma deslumbrante partitura documental dos mineiros Cao Guimarães e Pablo Lobato, também sugere que Carvalho não está tão sozinho assim. Mas poucos foram os realizadores que se devotaram tanto à busca por uma sintaxe inovadora capaz de conciliar a fúria criativa da palavra literária com o apetite voraz da câmera. A feliz comparação deste diálogo do audiovisual com o texto de Raduan Nassar com Limite (1931), de Mario Peixoto, apontada em sua estréia pelo crítico Carlos Alberto Mattos, num texto do site No., torna-se ainda mais pertinente conforme a  produção envelhece. Ambos falam do tempo. Ambos tratam o tempo como Tempo, com o T maísculo que ressalta sua divindade. Para Peixoto e Luiz Fernando, o Tempo é quase um deus. Uma força demiúrgica que parece estuprar os homens em sua fome de vitalidade, mas que é capaz de compensá-los com a iluminação, com o conhecimento. É sobre isso que versa a parábola do jovem que quer ser profeta de sua própria história. Ela versa sobre a incapacidade do ser humano de aprender com a eternidade, dançando sua música sem obedecer passos rígidos.

 Foto: Estadão

Lavoura Arcaica, o filme, tenta traduzir em um jorro imagético a importância da ancestralidade no caminho de cada um. Escrever sobre o produto final do esforço de Luiz Fernando, que se debruçou sobre as páginas de Nassar à caça de uma linguagem à altura da história, talvez seja menos importante do que caminhar no processo inverso e estudar suas fundições. A ancestralidade que alimenta as palavras rebeldes de André, um Hamlet caboclo inconformado com a obrigação de se subjulgar ao Pai, foi buscada na experiência de cada ator, de cada técnico, do próprio diretor, em um processo de imersão conseguido ao longo de quase cinco meses de ensaio, em uma fazenda em Minas.

 Foto: Estadão

Em um cenário similar ao que ambienta o drama de André, Selton Mello, Raul Cortez, Juliana Carneiro da Cunha, Caio Blat, Simone Spoladore e outros desbravaram a fronteira que separa o eu-ator do personagem, transitando no limiar do encontro entre essas duas potencialidades, extraindo delas uma verdade rara na maneira de atuar. Lavoura Arcaica se justificaria apenas na jornada de Walter Carvalho, o fotógrafo, para buscar na história das artes plásticas uma luz que sintetizasse o chiaroscuro daquele mundinho rural ensimesmado em seu próprio ethos. Ao deus Tempo, Walter e Luiz Fernando responderam visualmente com outra divindade: a terra. Tons telúricos desenham a agonia de André, encarnado na metralhadora verborrágica que Selton Mello dispara implacavelmente, vomitando palavras mais adequadas a um palco shakespearianos do que a um latifúndio distante da urbanização.

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 Foto: Estadão

Lavoura Arcaica pode (e deve) ser aproximado de um outro exercício raro de investigação lingüística, igualmente interessado em personagens de origem árabe e em choques entre a tradição e a modernidade: o documentário franco-marroquino Transes (1981), de Ahmed El Maanouni, restaurado e preservado no início de 2007 por iniciativa do realizador americano Martin Scorsese. Ao averigurar o impacto da sonoridade de um grupo de músicos, influenciado pelos sons das ruas, Transes se exercita pela seara da sensoralidade, testando os limites da recepção do espectador. É extamente o que Luiz Fernando fez. Mexeu com a própria alfabetização audiovisual dos cinéfilos brasileiros. E o comoveu em fazer algo novo (e único) soar tão familiar. Com o cheiro de  infância. Com a indolência da adolescência. Com a coragem da vida adulta. Como o bom cinema deve ser.

 Foto: Estadão

p.s.: Outra efeméride significativa cerca Luiz Fernando Carvalho: há 25 anos, ele virou a TV brasileira do avesso com o conjunto de planos-sequência de Os Homens Querem Paz, um especial para a Terça Nobre, exibido em 2 de abril de 1991, com Paulo Betti no papel do cangaceiro Emerenciano. O texto era de Péricles Leal. Foi um exercício da cartilhas do bangue-bangue, no formato nordestern, que demarcou toda a potência narrativa do diretor na TV. Este merecia uma reprise.

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