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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Entre faroeste e love story, Première Brasil tem um domingo de suspiros

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Seis anos depois de sua vitória na disputa pelo Redentor de melhor atriz, com o cult "Riscado", Karine Teles pode repetir a dose com o pancreático "Fala Comigo"  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA

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Eita aninho atípico para a Première Brasil do Festival do Rio este 2016, quando a micareta cinéfila carioca empresta seu abadá para filmes com lampejos de leveza e formatos de gênero atípicos para o padrão histórico da competição, a julgar pelo clima A Garota de Rosa-Schocking de Fala Comigo, exibido neste domingo. Falou-se que era um filme visceral ao fim da projeção no Cine Roxy. Um gaiato dissecou o organismo espasmódico do filme de estreia do premiado curta-metragista Felipe Sholl mais a fundo e empregou o adjetivo "pancreático", para dizer que é um longa de calar fundo em sua mirada analgésica sobre o objeto pontiagudo que causa tétano chamado amor. Na prática, o adjetivo foi empregado em papos regados a goles de cevada para Karine Teles, uma estrela em ascensão desde Que Horas Ela Volta? (2015). Lá ela era uma antagonista marxista. Aqui, na delicada direção de Sholl (primorosa no uso de elipses), na qual vive a recém-abandonada e suicida quarentona Ângela, ela é antagonista de si mesmo, até redescobrir o querer nos abraços, nos beijos e no gozo incontinente de um adolescente de 17 anos. Karina foi Molly Ringwald por um dia e arrancou suspiros.

Doida de meter medo, por exalar o aroma do abandono, Ângela é uma pianista que largou os estudos para casar, passou quase duas décadas com o mesmo amor e foi, sem saber bem a razão, largada sozinha numa casa com vista privilegiada, entre remédios de tarja preta e frangos assados com abacaxi. O nó que entra, salta e mata sua autoestima se amplia a cada trote que ela recebe de um garotão, Diogo (o achado Tom Karabachian), cujo fetiche é se masturbar ouvindo os murmúrios das analisandas de sua mãe, a psicanalista Clarice (a placa tectônica humana chamada Denise Fraga). Uma hora, numa sacada esperta de roteiro, adotada pelo diretor de (ganhador do prêmio Teddy em Berlim, em 2008), Ângela saca quem está acossando seu telefone e marca um encontro com ele. Pronto. Nasce uma paixão.

Assim como no clássico Ploc de Howard Deutch, no qual Molly tentava temperar o coxinha Andrew McCarthy com temperos sub-urbanos, Fala Comigo arma sua cama sobre as pilastras do interdito: lá em A Garota de Rosa Schocking a interdição era por luta de classes; aqui, é por idade e por um padrão aparente de pedofilia. E como no filmaço de Deutch, Sholl opta pela simplicidade, numa relação de cumplicidade com a esperança, abrindo pequenos atos dramatúrgicos onde o enfretamento de pontos de vista faz a ação. O embate de Ângela com a mãe de Diogo é memorável. O mesmo vale para os papos de madrugada entre o jovem e seu pai (Emílio de Mello).

Frente às atuais patrulhas do politicamente correto, Fala Comigo bate como um aríete no peito das convenções morais (arriscando-se, sobretudo, por desafiar parâmetros da cultura LGBTS, em duas sequências que, se contadas, viram spoiler), sem jamais abrir mão de seu fator-encantamento. A montagem de Luisa Marques talvez seja, até agora, a mais engenhosa de toda a Première até aqui, soltando sempre que pode o bicho que vive na alma de Karine, forte candidata ao Redentor de novo, seis anos de sua vitória por Riscado (2010).

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O veterano Nelson Xavier mata com gosto em "Comeback"  Foto: Estadão

Antes de Fale Comigo, a Première acolheu mal (com risos desrespeitosos) um filme danado de doido, ambientado em Goiás, mas diferente da pasteurização narrativa em voga: Comeback, com Nelson Xavier de matador de aluguel. Toca Altemar Dutra e dá para se ouvir Manolo Otero, como indícios de um ranço breganejo em um universo no qual matar dá orgulho. É a trilha perto para este neowestern. Embora o roteiro tenha desacertos (como ralentar demais na exposição de personagens talhados para terem ênfase em cena), a direção de Erico Rassi flerta com a estética dos thrillers de ação mais artesanais, como os filmes de Don Siegel (Os Impiedosos) e de Michael Winner (Desejo de Matar), com direito à criação de um personagem maior do que o filme: Amador, o gatilho relâmpago (hoje enferrujado) vivido por Xavier. O enredo se basta nas estratégias se sobrevivência de Amador na conjuntura das maquininhas de caçar níqueis e de seu desejo de assassinar de novo, por respeito. O filme tem falhas (como é o uso do termo comeback por personagens da velha guarda beira o ridículo), mas tem vigor e coeficiente de invenção, optando por transgredir na representação da velhice e da vilania.    

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