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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

'Campo Grande' é o destaque da Sexta da Paixão na TV

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Carla Ribas e Julia Bernat em "Campo Grande": delicadeza na relação filial  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECAPresente de Páscoa do Canal Brasil para seus espectadores fiéis: nesta Sexta-Feira da Paixão, às 22h, tem Campo Grande, da carioca Sandra Kogut, avançando várzea adentro para marcar um gol capaz de desestabilizar as desesperanças nossas de todo dia. Vencedor do troféu Redentor de melhor montagem no Festival do Rio de 2015, a produção será exibida pouco depois do imperdível programa Saideira, com Stepan Nercessian, hoje uma das melhores (e mais divertidas) atrações da TV a cabo, fruto de um projeto do saudoso Hugo Carvana.

Vamos ao filme de Sandra...

Geopolítica do abandono num Rio cheio de obras e de desigualdades  Foto: Estadão

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Com aparência de cinema iraniano, em seu über-neorrealismo no drible das convenções naturalistas do audiovisual verde e amarelo, o novo longa-metragem da diretora de Um Passaporte Húngaro (2001) passeia por um Rio de Janeiro cinza e ensopado de chuva, do Leblon ao confins da Zona Oeste, reinventando a geografia do abandono (social) à luz da fotografia do cearense Ivo Lopes. Egresso do Festival de Toronto de 2015, este drama avança sem muitas palavras e, sobretudo, explicações, para narrar o que uma representante de uma alta classe média em queda faz quando duas crianças são deixadas à sua porta, sem razão aparente.

Fraturada por obras sem término à vista, a Zona Sul carioca de Campo Grande é o ponto zero de uma narrativa que se espalha pelo Rio sem nunca se descabelar ou cair em arroubos melodramáticos. Toca Talismã, na voz de Élcio do Forrogode, toca Leandro & Leonardo, e tem Lembranças, de Kátia. É Mal Do Século a rodo, mas nada que tire o comboio reflexivo do caminho. Há pouco discurso e muita jornada. Saída de um casamento falido e cheia de bens empacotados para uma mudança jamais detalhada, Regina (Carla Ribas, sempre nas franjas da excelência) sabe, nos primeiros minutos da projeção que um casal de guris foi deixado à sua porta. Sua filha, Lila (vivida por uma força da natureza chamada Julia Bernat), que vai àquele apartamento apenas quando precisa, estranha o caso, e, mesmo em conflito com a mãe, deixa-se envolver, por encanto pelos garotos. Há todo um passivo emotivo da história de Regina e Lila que Sandra sugere, mas não explicita: espalham-se, no máximo, pistas aqui e acolá, como migalhas de resposta.

 

Essa lacuna não é sofrida: ela mantém a personagem de pé, dando-lhe relevo, garantindo-lhe encostas e magma. É estranho para ela o que Rayne e Ygor (vividos por Rayane do Amaral e Ygor Manoel) fazem ali. Nem as crianças sabem. Tudo o que lhes foi dito pela mãe foi que ela voltaria, e que eles deveriam esperar ali. Ponto; parágrafo: alguém que fez parte da casa de Regina há tempos tem a ver com aqueles meninos. Mas sobre isso, nada deve ser dito fora o fato de que não se deve esperar nenhuma reviravolta radical. Sandra é uma cineasta de delicadezas e de observações. Mais do que resolver a intriga e solucionar o incidente incitante, interessa à diretora checar o efeito dessa intriga sobre os envolvidos, deixando Ygor (cujo desempenho é sufocante) conduzi-la pela mão, levando a gente junto. E, em momentos nos quais menos se espera, Marcio Vito entra em cena, com sua economia e retidão habituais, botando o filme (e nosso fôlego) no bolso.

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Regina não é protagonista, talvez nem os meninos sejam. As fórmulas clássicas de protagonismo são espatifadas pelo filme. Todos têm peso equivalente, cabendo a Lila alguns minutos de epifania enquanto leva Love is Real, com ecos de John Lennon, ao piano, para trapacear a estrutura racional made in Irã do longa e apertar o coração da gente. Mas, valendo: não há como se sair impune de Campo Grande ainda que o preço cobrado por ele seja baixo. É o preço da contemplação e da confiança em uma diretora sempre capaz de desconsertar, consagrada nacionalmente ao vencer o Festival do Rio 2007 com seu belo Mutum. Uma geopolítica nova aparece neste longa que o Canal Brasil exibe nesta Semana santa: sua periferia não é a da exclusão. Não é favela movie. Sua periferia é a do abraço que vira abrigo: tudo aquilo que Regina e Lila precisam, sob a defesa de duas atrizes em estado de graça.

 

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