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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Aposta de risco para o cinema infanto-juvenil na carapaça de um escaravelho envolvente

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Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Numa atuação de maturidade surpreendente, Thiago Rosseti vai às raias da introspecção para dar vida à Alberto, o dublê de detetive de "O Escaravelho do Diabo": mistério mirim Foto: Estadão

São frequentes o uso de semi-closes, closes e formas afins de planos fechados em O Escaravelho do Diabo, o que parece uma estratégia incomum para um filme perfilado no canteiro do cinema infanto-juvenil - terreno de ângulos escancarados, de imagens abertas, de clareiras. Mas nesta adaptação do best-seller mirim de Lúcia Machado de Almeida, tal recurso não funciona como um disfarce para escamotear possíveis limitações de técnica ou de orçamento. A câmera se fecha no rosto do pequeno Alberto (papel do surpreendente Thiago Rosseti) porque há nele um misto de dor, angústia e carência que convida a câmera a se aproximar dele e a observar seus gestos, suas expressões, sua introspecção. Ele é menino ainda. Viveu pouco ainda, mas já foi o suficiente para ter um chamego de Charlie Brown pela garotinha ruiva de sua escola. Ah! E deu tempo também de ele sofrer uma grande perda: o assassinato de seu irmão mais velho, um substituto indireto (mas necessário) de seu também finado pai. Isso basta de justificativa para o diretor Carlo Milani buscar intimidade com ele, numa opção que poderia ter sido um risco suicida em se tratando do filão no qual o filme se encontra, mas não foi. Ela acaba sendo um gesto de coragem, que tira o filme da mesmice e lhe configura originalidade - e obrigatoriedade no nosso escopo cinéfilo.

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Opção semelhante se dá com o delegado Rubens Pimentel, personagem que cresce às alturas da fragilidade existencial graças ao talento do titã chamado Marcos Caruso. É comum no filme a câmera se perder em seu olhar, curiosa para entender a dinâmica da doença degenerativa que ameaça a carreira e a saúde do policial. E nessa aeróbica de aproximações, o enquadramento buscado repetidas (mas nunca cansativas) vezes por Milani não apenas assinala a tridimensionalidade de seus personagens, como cria uma atípica, mas provocativa simetria entre eles, a despeito do abismo de idades. Os dois são, de alguma forma, extremos de uma mesma persona, um mesmo "eu-lírico" que nos livros eram de Lúcia Machado e, nas telas, são de Milani: um alter ego que se inquieta com a falta de respostas, com as soluções óbvias. Dessa inquietação nasce algo raro no cardápio para dentes de leite e para adolescentes em nossa filmografia: uma narrativa suspense. Dispensa-se o humor, ferramenta quase inerente para essa linhagem de produções, mas fica o romance, a aventura e a tensão, em doses fartas.

Marcos Caruso é o Delegado Pimentel: ecos de Eastwood Foto: Estadão

Fica de lúdico uma cidade imaginária - o Vale das Flores - e um enredo com direito a um vilão deformado, tatuado e adepto da companhia de insetos, vivido pelo escritor (e cada vez mais ator) Lourenço Mutarelli, gênio maior das histórias em quadrinhos no país, visto como o chefe da família de Que Horas Ela Volta? (2015). Nessa Passárgada de sombras e crimes, Alberto tenta entender por que seu irmão foi morto e por que outros ruivos como ele estão sendo abatidos. A menina que ele gosta também em cabelos vermelhos. Logo, é bom que ele corra.

 Foto: Estadão

Pimentel também tenta correr, mas sua memória por vezes vai e vem em lampejos de falta de lucidez. E isso para um investigador é uma sentença de morte, conforme ele desabafa ao padre da cidade (Jonas Bloch), numa sequência mais próxima de um bom filme de Clint Eastwood (Menina de Ouro ou Grande Torino) do que em longas made in Brasil. Parece até destoante que uma produção com poder de fogo - graças à montagem envolvente de Karen Harley - conjugue toadas tão distantes, indo da inocência da criança às impotências sazonais da vida adulta. Mas tudo se azeita e uma dupla de heróis se cria. E este é o legado maior desta produção, mesmo quando ela peca em efeitos mambembes (como o fogaréu no clímax) ou em deslizes de roteiro (como se vê no mau aproveitamento da mãe de Alberto). Mas suas imperfeições não maculam um esforço de trazer um romance que alfabetizou os sonhos de gerações e gerações de leitores no Brasil dos anos 1950 para cá. Quem dera fizessem o mesmo com A Droga da Obediência, de Pedro Bandeira.

Francisco Milani de jaqueta preta em cena de "Eles Não Usam Black-Tie", um marco político em nossas telas Foto: Estadão

p.s.: Numa das melhores sequências de O Escaravelho do Diabo, entra em cena um ator brilhante que é mais conhecido por sua voz: Isaac Bardavid. Ele é o dublador de Wolverine e do Esqueleto de He-Man. Sua presença evoca uma ausência afetiva da nossa dublagem e de nossa arte audiovisual em suas mais distintas latitudes: Francisco Milani (1936-2005). Pai de Carlo, ele costuma ser mais lembrado pela dublagem de Tom Selleck no seriado Magnum e de Jack Nicholson e Chinatown (1974) por suas aparições como comediante em Armação Ilimitada ou em Zorra Total, como Seu Saraiva. Foi também o Tio Juvenal de A Grande Família. Mas Francisco deu ao cinema atuações antológicas em Terra em Transe (1961), Eles Não Usam Black-Tie (1981) e O Lado Certo da Vida Errada (1996), eternizando nas telonas uma doce militância mais do que necessária nestes nossos tempos de temporais políticos. Saudades...

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