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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

A surpresa da Mostra de SP: Atom Egoyan disseca o nazismo

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:

Coisa boa foi ver Atom Egoyan sair da lama e da pasmaceira com Memórias Secretas (Remember), achado imperdível da seleta de 312 filmes da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, com projeções nesta terça (dia 27), às 18h, no Cinearte 1, no dia 3 no Reserva Cultural e no dia 4 no Espaço Itaú. Cineasta de sangue armênio, nascido no Cairo (Egito) e radicado no Canadá, ele despontou como um talento sem freios nos anos 1990, graças às narrativas cheias de charme (temperadas com filetes de transgressão) de Exótica (1994), a obra-prima O Doce Amanhã (1997), O Fio da Inocência (1999) e Ararat (2002). Mas no correr da década passada seu frescor se gaseificou e sumiu no vento, perdido entre thrillers sem a mesma ambição formal, do qual apenas Adoração (2008) rendeu-lhe algum reconhecimento e um prêmio do Júri Ecumênico de Cannes. Ano passado, fez um suspense sólido até os 25 minutos finais, pelos quais saiu vaiado da Croisette: À Procura, com Ryan Reynolds. Agora, não. Seu novo trabalho traz uma desenvoltura na conjugação das desinências verbais do thriller como há muito não se via. E Christopher Plummer é seu maior trunfo.

Max (Martin Landau, de óculos) dá instruções a Zev (Plummer) sobre como encontrar um carrasco nazista Foto: Estadão

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Octogenário, com calibre 8.5, o eterno Capitão Von Trapp de A Noviça Rebelde (1965) dá uma aula de etiqueta mostrando como atuar com elegância no registro da violência ao dar corpo a uma trama de vingança. Egoyan narra em Memórias Secretas a jornada do viúvo Zev (Plummer) para dar cabo do carrasco nazista que assassinou sua família em Auschwitz. Indicada ao Leão de Ouro no Festival de Veneza, em setembro, a produção de cerca de US$ 13 milhões saiu da terra das gôndolas com o Vittorio Veneto Film Festival Award, num ano em que o prêmio máximo ficou com o engodo Desde Allá, da Venezuela, que também está na programação da Mostra.

Em Memórias Secretas, o que alimenta os passos de Zev é uma promessa feita ao colega de campo de concentração (e agora de asilo) Max (a lenda viva Martin Landau). Incapacitado de cumprir sua revanche, por estar confinado a uma cadeira de rodas, Max dá as coordenadas para Zev descobrir o paradeiro de seu torturador alemão, hoje radicado em solo americano. Com uma arma na mala, Zev dribla a direção da casa de repouso onde mora e finta seus parentes, ganhando mundo com sangue nos olhos. Mas há um problema para sua cruzada: a cada cochilada, ele perde a percepção da realidade, embatucado entre recordações e o luto pela morte da mulher.

No limite do delírio, ele tenta manter a sanidade e fazer os remanescentes do hitlerismo pagarem o preço pelo Holocausto. Um encontro inusitado com um agente da Lei (ou quase isso), vivido por Dean Norris, o Hank Schrader de Breaking Bad, dá uma guinada no longa que põe Egoyan de volta aos trilhos. Não se trata de mais uma ciranda de traições e de sustos. Este é um filme que reflete sobre cicatrizes étnicas: tema essencial ao cineasta em sua busca por radiografar identidades.

p.s.: Sábado passado (dia 24), a Mostra trouxe um filme catarinense que deixou aquela sensação de "Opa! Tem coisa boa aí", apesar de ter imperfeições, ao recriar um episódio violento do interior do Sul brasileiro: Oração do Amor Selvagem, de Chico Faganello. Com sessões extras nestas terça (27), às 15h45m, na Cinesala, e no dia 4 de novembro, às 20h15m, Espaço Itaú, o longa-metragem reconstitui livremente - com a poesia da perplexidade - um crime ligado à histeria religiosa inerente ao advento de novos credos.

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No longa "Oração do Amor Selvagem", o colono Tiago (Diaz) ensina ao pastor Kurtz (Ivo Müller) que a vontade do Senhor tem limites, mas a paixão dos homens, não Foto: Estadão

Mais preocupada em buscar uma tonalidade própria para a tragédia da segregação do que em ser fiéis a fatos, a produção narra o drama de Tiago (Chico Diaz, em sua visceralidade máxima), colono às voltas com a intolerância de um pastor de DNA eslavo (Ivo Müller, ator a quem o cinema nacional precisa ficar atento). Viúvo e com uma filha pequena para criar, Tiago gravita entre dois beatos, primeiro um clérigo caboclo e depois o ministro evangélico por cuja irmã ele vai cair de amores. Sua única certeza: "Deus não pode impedir ninguém de ser feliz". O primeiro terço de Oração... tropeça em si mesmo, por conta de uma montagem confusa, que embaralha o entendimento, prejudicado por quebras-molas no roteiro. Porém, a partir da primeira meia hora, o longa ganha fôlego, com ar tirado dos pulmões de Diaz, e se estabelece como um retrato tenso sobre a bestialidade inerente ao verbo "crer", capaz de evocar o espírito social trágico de O Pagador de Promessas (1962) e de Vereda da Salvação (1964), ambos de Anselmo Duarte. É um filme a ser debatido. Um filme necessário por olhar para um rincão do Brasil sobre o qual pouco se fala na telona. E a maneira que Faganello encontra para falar emociona.

p.s.2: Papo de quadrinhos agora: fique ligado na arte de Kaare Kyle Andrews em Iron Fist: The Living Weapon. O material saiu aqui agora num álbum bacanudo da Panini: Punho de Ferro: A Arma Viva, centrado no processo de amadurecimento moral do mascarado carateca da Marvel Comics. E falando em gibi, quem ainda não curtiu o trabalho de John Romita Jr. à frente das aventuras do Homem de Aço deve correr à banca e devorar o gibi mensal Superman. É uma arte no apogeu, seguindo um roteiro enxuto, no qual as fragilidades do último filho de Krypton transbordam.

p.s.3: Um achado nos palcos do Rio de Janeiro: Bruce Gomlevsky vai estrelar uma montagem de  An Iliad, da diretora e do ator americanos Lisa Peterson e Denis O'Hare, em cartaz a partir do dia 5 no CCBB. Com ensaios abertos nos dias 28, 29, 30 e 31 de outubro e 1º de novembro, às 19H, o texto é uma releitura contemporânea para a prosa de Homero, com base na Guerra de Troia. Em cena, um poeta errante, beatnik de si mesmo, compartilha com o público as memórias do conflito deflagrado pelo rapto da mulher mais bela da Terra. A tradução é de Geraldinho Carneiro.

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