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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|Sempre ele o amor

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Atualização:
 Foto: Estadão

 

Mesmo nas séries de TV mais sofisticadas, existe o núcleo dramatúrgico simplificador "eu te amo, você não me ama, eu não te amo, você me ama, ele não é seu filho, ele é seu filho, a gente se ama, existe felicidade, sim", que corre paralelo à trama principal do inconformado professor de Química que se transforma no maior traficante de metanfetamina, do terrorista arrependido de caso com o inimigo, do publicitário conquistador perturbado bêbado que não se ama, do republicano liberal em crise com os rumos do seu partido, do sexólogo precursor que desafia a comunidade médica e do mafioso gente boa que não se conforma com seus pares, que só pensam em vender histórias para Hollywood e entrar para o programa de delação premiada.

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Se elas vieram para substituir a esgotada linguagem da TV aberta, especialmente do burro que puxa o pesado eixo da programação diária, a novela, as séries não rompem completamente com o cordão umbilical que liga os olhos do espectador com o coração.

Séries como, pela ordem, Breaking Bad, Homeland, Mad Men, Newsroom, Masters of Sex e Família Soprano, que tiram audiência das redes tradicionais, plagiam temas melosos, cenas e até frases do produto que se tornou linguagem de exportação, o dramalhão.

O romantismo come solto entre questões atuais de geopolítica, crise ética, falência das instituições e revolução comportamental, como a sexual.

É o amor, que nunca nos abandona, que pira, inspira, conduz e seduz, como numa canção de Djavan e como no épico, dramaturgia, literatura, ópera, samba, poesia, cinema mudo, falado, em cores, 3D, IMAX, pirata ou on demand.

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Os autores de novela devem se perguntar: se dizem que nosso gênero é decadente, como HBO, ACM, SHOWTIME e afins ganham milhões reproduzindo nossa eficiente técnica de enganchar e enrolar o espectador com um clássico melodrama?

Breaking Bad traz a crise dos valores morais americanos, quando um pai de família corrompe a lógica e concilia o banditismo com os dilemas comuns de um casamento em que tem um casal de filhos.

Homeland fala do atual papel da CIA no intrincado jogo geopolítico americano de guerrear sem soldados. Mas lá está o imbróglio amoroso entre o marido com o casal de filhos, que voltou convertido ao Islã, seu melhor amigo, sua mulher e uma agente bipolar, que engravida.

Mad Men é conduzido por um fascinante conquistador criativo de poucas e exatas palavras, que se apaixona perdidamente pelos rabos de saia que cruzam seu caminho, apesar de casado e com um casal de filhos com a "mulher ideal" padrão anos 60.

Newsroom discute a promiscuidade entre a notícia e o idealismo, a ética jornalística e o conturbado processo democrático, num país dividido ao meio. Mas, por trás do furo de reportagem, o âncora do telejornal tem um caso mal resolvido com sua produtora. Na série com diálogo intenso, rico, difícil de acompanhar, o último capítulo da última temporada terminou com um piegas pedido de casamento, com direito a anel, corrida pelos corredores, como numa autêntica novela mexicana.

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Masters of Sex fala da trabalheira que o médico William Masters teve, na década de 1950, para convencer a conservadora sociedade acadêmica a iniciar uma pesquisa aprofundada sobre sexo, numa época em que mencionar o orgasmo feminino era uma blasfémia. Mas o que conta, mesmo, é o dilema entre ele, sua esposa, com quem brocha, e sua secretária, com quem "pratica" ciência.

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Família Soprano, a série inovadora, que revolucionou a TV paga, é conduzida por um personagem cativante, apesar de violentíssimo, que tem que dividir seu tempo entre resolver as confusões dos negócios ilícitos da sua gangue e as da família, sem contar o freudiano caso de amor com a psicóloga. Pai que faz o impossível para criar seu casal de filhos num ambiente que se encaixa no "american dream".

Não conseguimos contar uma história sem a presença dele, O AMOR.

No berçário da literatura, dois povos entraram em guerra na Grécia Antiga por causa dos cachos de uma pilantrinha, Helena, que, casada com o líder de um povo, fugiu com o de outro, o de Tróia.

Na nova série The Americans, da FX, o tema é rico: uma dupla de espiões da KGB se muda para Washington. Fingem ser casados, criam dois filhos, quando a Guerra Fria reacende com a posse de Reagan em 1981.

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Eles dobram a carga horária de trabalho e execuções. Porém, se apaixonam de fato, querem estar casados de fato.

O amor luta contra o Estado. O sentimento fútil burguês corrompe os ideais da ditadura do proletariado. O socialismo mundial está em crise. Na revolução permanente, não há tempo para essa frescura chamada amor. Espiões não amam.

Minha mulher adora.

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Na cadeia brasileira, entre assassinas e psicopatas, uma história de amor rendeu: a de Suzane von Richthofen, condenada a 38 anos de prisão pela morte dos pais, e Sandra Regina Gomes, ou Sandrão, condenada a 27 anos de prisão pelo sequestro de uma empresária.

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As duas se casaram no presídio de Tremembé, que ocupa um antigo convento no interior de SP, onde estão Elize Matsunaga, ex-mulher de Sandrão, acusada de matar e esquartejar o marido Marcos Matsunaga, e Anna Carolina Jatobá, acusada de assassinar da enteada Isabella Nardoni.

Se, em todo país, o casamento homossexual causa repúdio em grupos religiosos e líderes conservadores, ele está paradoxalmente legalizado no presídio. Suzane pôde se mudar para a cela de presas casadas, em que vivem oito casais, ao assinar um contrato de reconhecimento de relacionamento afetivo. No sistema, o papel tem o valor de uma certidão de casamento, permite o convívio marital. O pacto impõe regras de convivência: caso se separe, a presa não poderá voltar à cela destinada a casais num prazo de seis meses; se brigar, acaba tudo.

O amor aparenta ser verdadeiro. Suzane abriu mão do direito de passar os dias de agosto na progressão de regime fora da prisão e pediu à juíza Sueli de Oliveira Armani para adiar a adesão ao regime semiaberto, em que seria transferida para outra unidade.

Amor bandido digno de uma série, como Orange Is the New Black.

Que minha mulher também adora.

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Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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