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Pequenas neuroses contemporâneas

Opinião|ficar por fora = cyber-angústia

Atualização:

 

Começo da década de 1980. Nos bares, bebíamos uísque nacional, Bell's, Passaport ou Teacher's. Natu Nobilis era a opção mais em conta. Os únicos que a fechada economia brasileira protecionista permitia.

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Comíamos batata frita sem culpa, ignorando o esteroide hoje conhecido como colesterol.

Assuntos: redemocratização, holocausto nuclear, sandinistas, papa peregrino antimarxista, dancinha de Margaret Thatcher com Ronald Reagan, complô contra a utopia de uma socialdemocracia com bem-estar social, que enfiou na empada nos ideais de muitas gerações uma azeitona com um caroço duríssimo de engolir, e Angústia da Influência.

Angústia do quê?

Da influência. Terminávamos as noites mais desanimados do que antes. Sem contar a inevitável ressaca.

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Isso se o mundo não acabasse ao amanhecer.

Síndrome da Influência.

Somos influenciados por quem? Somos? Nada é original, não somos nada, não somos especiais, somos nada. Pretensioso, pague a conta, pegue um táxi, encoste a cabecinha no travesseiro e reflita: você não é nada mais do que um coquetel de ideias mal lapidadas.

Ou vá para uma danceteria dançar Combat Rock do The Clash, que, você pensa, é uma banda proletária que contesta o neoliberalismo, mas, na verdade, são universitários filhinhos de papai que faturam em cima da inquietude juvenil, influenciados pelo punk.

Tudo ilusão.

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Combate sem ser autêntico. Tudo por culpa do livro The Anxiety of Influence: A Theory of Poetry, de Harold Bloom, que nos deu uma das teses mais apavorantes do pós-moderno e tirou o sono de uma galera. Como a morte de deus anunciada por Nietzsche em A Gaia Ciência, o Mito de Sísifo de Camus e A Náusea de Sartre tiraram o de gerações anteriores.

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"Todo poema é uma interpretação distorcida de um poema pai. Um poema não é uma superação da angústia, mas a angústia em si", escreveu.

Para Bloom, a obra de um poeta não é causal. Somos influenciados pelo singular ato da apropriação interpretativa do texto de um percursor, e buscamos numa ação criativa corrigir o que o antecessor não conseguiu. Poetas estão em busca da originalidade, envolvidos em distorções, desvios ("swerve"), de uma cadeia de ansiedades.

O problema foi que começamos a expandir a angústia para todas as frentes de trabalho. Não nos livramos da influência dos que vieram antes. Bloom, através dos poetas, nos mandava uma mensagem. Aos escritores, músicos, advogados, passando por modelos, subversivos, agentes secretos, ambulantes, marginais.

Alguém nos influencia. Quem?

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Garçom, tem gelo?

Por anos, lamentei com amigos que não éramos originais. Você é cópia de Guimarães. Rascunho. Você? De Hemingway. Pirata. Foi Sam Shepard sem nunca ter sido.

Sem nunca chegar aos pés. Sam Shepard... Casado com a musa de King Kong, Jessica Lange. Tá maluco?

Então, com o tempo, descobri que ansiamos estar ansiosos, angustiados. Sem a aflição de uma ansiedade, não se dá um passo.

Talvez a essência do homem seja buscar, movido por uma angústia crônica, a cura para ansiedades, como a da influência. Ansiar é viver.

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Sócrates influenciou Platão, que influenciou Aristóteles. E foi o primeiro quem dançou. Forçado a se matar. O antecessor se deu mal.

Hoje vivemos uma aflição contemporânea ante o fenômeno da hiperconectividade, dos startups, que você antigamente chamava de "boas ideias".

É a angústia de estar por fora. A cyber-angústia.

Você pode até ter se livrado do Orkut, aquela ferramenta meio boboca de quem queria fofocar, fornicar, xeretar, se meter na vida alheia e se exibir. Tomou cicuta e se libertou. Mas ferramenta mudou o nome. Virou rede social. Você foi praticamente forçado a ter um perfil no Facebook, plataforma para quem quer fofocar, fornicar, xeretar, se meter na vida alheia, se exibir, protestar, mudar o sobrenome para Guarani-Kaiowá e fazer negócios. Você também abriu uma conta no Twitter, abriu outra no Instagram, e chama a palavra seguida por um jogo da velha de hashtag. Olha lá, o G+ tá crescendo, tá dando certo, duvidavam, mas tá rolando. Bora abrir uma conta nele também. Vai ficar fora dessa?

Ficar por fora = cyber-angústia.

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Tem gente fazendo loja virtual dentro do Face, FanPage. Tem gente ganhando dinheiro sem sair de casa. Você pode ter uma loja de camisetas bacanas com frases espertas estampadas e vender no Face. Paga R$ 3 por dia para anunciar. R$ 90 por mês. O preço de uma camiseta mediana. Você não é empreendedor? Você é o quê, um acomodado? O mundo mudou enquanto você postava foto do seu gatinho. Lava o rosto, vamos gerenciar.

Se você não fizer outro fará = cyber-angústia.

Cyber-negócios se expandem. Tem gente faturando alto inventando aplicativos básicos. Adolescentes chegam no primeiro milhão enquanto você rala como um desgraçado há décadas para fechar a conta na mágica cor azul. Sem contar que você gasta uma fortuna em contas de celular. Usa aplicativos? Tem Whats-up? Viber? Skype você conhece. Quantos giga tem no Dropbox? Só dois? Grava seus arquivos no iCloud? Atualiza? Tem Tumblr, Linkedln? E se der pau no seu computador, os dados da sua vida estão salvos em alguma nuvem?

Ouviu falar de crowdfunding? Não? Tem neguinho financiando os próprios projetos pela internet. Em sites especializados. Jogam suas boas ideias, os startups, e pessoas comuns investem nelas, conhecidas ou não. Tem gente fazendo exposições, documentários e viagens com dinheiro alheio. Escritores independentes ingleses lançaram o unbound.co.uk para conseguir adiantamento para seus livros. Os leitores os financiam.

Sem contar que você perde um dinheirão com a sua desatenção. Pensou nas milhas se evaporando pelos ralos de diversos programas de milhagem? Valem dinheiro. Até posto de gasolina agora tem. Pediu CPF na nota? Fez compras por um site de compras coletivas? Você anda pagando três vezes mais do que aqueles que frequentam o Groupon.

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Vai continuar cyber-angustiadinho ou vai tomar uma atitude?

Tudo bem. Calma. Respire pelo nariz.

Tem um jeito de se livrar de tamanha angústia. Mudar-se para Coreia do Norte, onde não existe internet. Não precisará gastar horas do dia postando no blog, linkando no Twitter, G+ e Face, respondendo aos seguidores da FanPage, fazendo negócios, postando fotos no Instagram. O problema é que as angústias de lá são de tempos sombrios. Aquelas do mundo analógico, como o holocausto nuclear.

 

 Foto: Estadão
Opinião por Marcelo Rubens Paiva
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