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Opinião|Viagem a Cuba

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Amigos, eis aí um texto que escrevi sobre a minha última viagem a Cuba. Ficou meio grandinho, mas se quiserem ler...

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HAVANA Saio domingo de manhã pelas ruas de Havana atrás de jornais. Não é fácil encontrá-los em Cuba. Passo por duas bancas e tanto o Granma como o Juventud Rebelde já estão esgotados. Ando mais, porque sei que existem vendedores ambulantes, que ficam pela avenida principal da cidade, a 23, no bairro do Vedado. Nada. Entro numa rua lateral e vejo um homem lendo um jornal, sentado no meio-fio. Pergunto onde comprou. Indica um senhor de idade, com bengala, logo adiante. Mas ele também não tinha mais nada. A primeira pessoa se oferece para ceder o jornal para mim. "Depois compro outro". Quando estou quase a ponto de aceitar a oferta, chega outro velhinho que ouvia a conversa e tira do bolso os dois periódicos desejados. "Quanto lhe devo?", pergunto. "Quanto quiser, señor". Depois, segura minha mão, olha firme e acrescenta: "Dá-me cosa buena, patrón..."

A pequena cena do cotidiano diz muito sobre a Cuba atual. Há por aqui pouca coisa parecida com um "jornal", tal qual o conhecemos nos países capitalistas. Os mais conhecidos são o Granma, órgão oficial do Partido Comunista Cubano, e o Juventud Rebelde, periódico da juventude cubana fundado por Fidel Castro em 1965, conforme se lê na portada. São pequenos, em geral de quatro páginas, formato tablóide. Por isso, o costume é dobrar em quatro partes e colocá-los no bolso, ou dentro de uma bolsa. O que se lê neles também parece pouco substancial. Informações sobre personalidades históricas como Antonio Maceo, um herói da independência; discursos de Fidel, menções esporádicas a Guevara, Camilo Cienfuegos e outras figuras da revolução, junto com algumas pílulas de atualidade. Durante o festival de cinema, comentários sobre filmes, críticas de muito bom nível, diga-se de passagem. Artigos contra Bush e breves notas internacionais. E destaque especial ao presidente da Venezuela, Hugo Chávez, atual amigo do peito da República de Cuba.

Apesar de ralos, os jornais são disputados como pãezinhos quentes. Antes, os hotéis os vendiam. Agora, não mais. É preciso buscá-los nas ruas. As "bancas" em nada se parecem com as nossas. São pouco numerosas e vendem esses dois jornais mais conhecidos, ou outros que circulam semanalmente, como a Tribuna de la Habana, dominical. Nada a ver com a profusão de ofertas de uma banca da Avenida Paulista ou da Avenida Brasil, por exemplo. Informação é artigo raro em Cuba, como tantos outros.

A banal cena do cotidiano diz outras coisas também, além da miséria informativa. Em que outro lugar você encontraria uma pessoa que se dispõe a dar um bem tão precioso quanto um jornal em Cuba a um estrangeiro desconhecido? Quer dizer, se é impossível não se irritar às vezes com Cuba, mais impossível ainda é deixar de amar Cuba por suas qualidades. E a maior dessas qualidades é o próprio povo cubano.

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Mas a cena também nos revela que um velhinho, como o que nos vendeu o jornal, anda necessitado e em busca de uns trocados. Quem visitou Cuba nos anos 80 do século passado, sabe que oferecer uma gorjeta naquela época era ato considerado quase insultuoso. Mudou. Há pessoas carentes pelas ruas, e estas pedem uma ajuda ao estrangeiro. São poucas, quase inexistentes, se comparadas à multidão de miseráveis das nossas grandes cidades, para não falar dos grotões ou das periferias brasileiras. Mas os carentes cubanos existem. Outro indício: as arrumadeiras dos hotéis deixam bem claro que gostariam de receber uma quantia quando o hóspede se for. Gorjeta não é mais uma ofensa, muito pelo contrário.

A Cuba atual parece ao viajante bem mudada, tanto em relação à dos anos 1980 quanto à dos anos 1990. Quando a União Soviética fornecia petróleo e comprava açúcar a preços favorecidos Havana podia se dar ao luxo de oferecer vida bastante tranqüila aos cidadãos. Essa condição saltava à vista de quem visitava a ilha. No princípio dos anos 90, depois da queda do campo socialista, a situação se inverteu. O "período especial", que se seguiu à dissolução da União Soviética, apresentou ao visitante uma Havana carente dos bens mais primários para a sobrevivência. Apesar da repressão policial, houve motins e saques na cidade, e esperava-se que o regime caísse de uma hora para outra. Não caiu, como sabemos.

A alternativa para a sobrevivência foi reintroduzir o uso do dólar nas transações entre pessoas e fechar os olhos para práticas como a prostituição, câmbio negro de produtos como rum, charutos e medicamentos, em especial o "milagroso" PPG, que, dizem, desobstrui artérias e apresenta efeito colateral de Viagra. No início dos anos 90 era impossível caminhar pelo Vedado, bairro onde fica a maioria dos hotéis, ou pelo Malecón, o calçadão da avenida à beira-mar. Você era abordado a todo instante por uma multidão indócil de vendedores oferecendo de "puros" a mulatas cubanas. Isso quando as tais mulatas cubanas não se ofereciam em pessoa, e da maneira a mais agressiva possível. Esse mercado informal praticamente desapareceu de cena ou pelo menos se tornou mais discreto.

Desde o começo do século 21 observa-se um equilíbrio maior na economia. Mesmo assim, Havana continua uma cidade mal iluminada, e sujeita vários pequenos apagões por dia, mesmo no bairro nobre do Vedado. Os carrões americanos dos anos 50, já partes do folclore visual cubano, continuam a circular, agora misturados a modelos modernos, em especial em frente aos hotéis ou pontos turísticos. Alguns desses Chevrolets, Buicks e Pontiacs estão bem conservados e se oferecem ao transporte de turistas, como carros "de época". Já nos bairros mais periféricos, eles são de fato o meio de transporte, pelo menos da parte da população que pode possuir um desses inveterados bebedores de gasolina, que rodam como por milagre, caindo aos pedaços.

Não existe fartura de nada, mas não se pode dizer que população esteja vivendo em estado de penúria. Não se vêem crianças nas ruas, porque estão nas escolas. Se numa tarde de sábado você andar por uma das ruas principais do bairro de Havana Velha, a calle Obispo, encontrará lojas cheias - e não apenas de turistas; há cubanos entre eles. Pode-se ir ao menos badalado bairro de Centro Havana e, mesmo nas lojinhas bem mais modestas que as da calle Obispo, também se verá gente comprando. Quem esteve na cidade anos atrás sabe que não era assim. Não havia lojas nos bairros menos centrais e muito menos produtos para comprar nas prateleiras. Um brasileiro de classe média pode achar esses produtos raros e toscos, mas para os cubanos eles são essenciais.

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A impressão visual coincide com informações sobre índices melhores da economia, beneficiada pelas parcerias com a Venezuela e a China. E também pelos investimentos europeus, perceptíveis nos melhores pontos da cidade. Os espanhóis, por exemplo, estão entrando firmes no ramo hoteleiro, e já existem hotéis da rede Meliá na cidade. Os empresários europeus estão investindo também na reforma de hotéis tradicionais, deteriorados pela falta de manutenção, como o Riviera, agora fechado para uma repaginação completa, e o Habana Libre, antigo Hilton, já remodelado e funcionando. Essa possibilidade de negócios na carente Cuba não tem passado despercebida nem mesmo a empresários norte-americanos, impedidos de participar do bolo por causa do bloqueio econômico. Em dezembro, uma delegação do congresso norte-americano esteve hospedada no Hotel Nacional. Os parlamentares conversaram com autoridades cubanas e colocaram-se como embaixadores na tentativa de flexibilização do embargo. Há negócios em vista, e muitos americanos desejam participar deles, quaisquer que sejam as reservas, morais ou políticas, ao regime cubano. Pecunia non olet - o dinheiro não fede, como dizia o imperador Vespasiano, famoso por tributar mictórios para pôr ordem nas finanças públicas.

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Por falar em dinheiro, Cuba hoje funciona com duas moedas: o peso (moeda nacional) e o peso conversível. Um dólar vale 0,80 centavos do peso conversível e um euro, 1,17 pesos. Um peso conversível pode ser trocado por 24 pesos de moeda nacional - mas esta só compra um número limitado de produtos. O cubano tem acesso às duas moedas, e também os estrangeiros podem fazer suas compras em qualquer uma delas. Mas, para beneficiar as transações em euros, e desestimular as trocas em dólares, o governo taxa em 11% a moeda americana. Assim, se você comprar mercadorias no valor de 100 dólares, a conta a pagar (em espécie ou no cartão de crédito) será, na realidade, de 111 dólares.

TRANSIÇÃO NO AR Com esse sistema monetário um tanto complicado, as pessoas vão se virando. E aguardam com aparente serenidade a transição que virá com o fim da era Fidel. Há um claro sinal de despedida no ar, perceptível ao visitante mais atento. Mesmo para quem é veterano em Cuba, o tom oficialesco dos jornais parece exagerado, um tom acima do habitual. Não há dia em que Granma e Juventud Rebelde não dêem destaque ao "comandante en jefe" em sua página principal. Não faz muito tempo, o Granma dedicou duas de suas quatro páginas a um longo artigo intitulado "As 15 razões para se admirar Fidel".

O culto à personalidade se estende às televisões, com uma overdose de videoclipes sobre a fase épica da revolução e debates sobre a importância histórica do líder. Tudo, inútil dizer, sem qualquer contraponto ou matiz. É um processo de reafirmação de uma imagem já construída, destinada a reforçar a coesão social para uma transição que o regime pretende sem riscos. O tempo dirá se vai ser assim mesmo. Não há notícias críveis sobre a saúde de Fidel, neste país onde tudo é oficial e não existem fontes de informações alternativas. Há apenas indícios e os cubanos, mais que qualquer outro povo, parecem aptos a detectá-los, cheirá-los no ar, para adivinhar a direção do vento. Se o capitalismo globalizado sofre da vertigem informativa, o socialismo, ou o que resta dele, padece da indigência de notícias.

Nessas condições, a boataria costuma se impor. Mas mesmo os boatos, em Cuba, se ouvem em tom menor. Quando eu lá estava, correu no exterior a "notícia" de que a morte de Fidel era iminente. Uma brasileira, recém-chegada a Havana, disse que vira na televisão uma entrevista de Castro confessando que estava para morrer. Achei meio delirante, mas comentei a "informação" com um taxista e ele riu: "Mesmo que fosse verdade, o comandante jamais diria isso, pois seria prova de fraqueza". Essa imagem de Fidel ainda é bem comum em Cuba - o machão, o valente que não se intimida diante do inimigo imperialista, que enfrenta a morte de cabeça erguida. Chamavam-no "el Caballo", o cavalo, pelo tamanho e força física. Hoje, é o velhinho de barbas brancas cujas imagens de vez em quando se vêem na TV. Mas mesmo estas imagens mais frágeis são contrabalançadas por outras, de arquivo, de um Fidel jovem, barba negra, mochila de 40 quilos nas costas, fuzil no ombro.

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E os jornais de vez em quando soltam notícias animadoras sobre o líder, numa ambivalência que parece programada. Preparam a despedida ao mesmo tempo em que reafirmam que ele continua vivo e vigilante. Há um mês, o Granma deu como manchete outro dia: "Fidel felicita Chávez e o povo venezuelano pela grande vitória eleitoral". Na TV venezuelana, a Telesur, captável em Havana, Hugo Chávez confirma a conversa com Fidel. O Granma também afirma que o líder teria telefonado para o seu Burô Político e trocado idéias com dois dos homens fortes cubanos - Carlos Lage Dávila, secretário do Comitê Executivo do Conselho de Ministros, e Ricardo Alarcón de Quesada, presidente da Assembléia Nacional do Poder Popular. Uma autoridade do governo brasileiro me confidenciou que esteve em uma festa, falou com o filho de Fidel e este garantiu que o pai está consciente, com a situação de saúde estável, evoluindo "para melhor". Mas acrescentou que os médicos é que sabem do futuro.

Há poucos dias registrou-se outra conversa telefônica entre Fidel e Chávez, comentando assuntos da atualidade, como a crise das bolsas asiáticas, para mostrar que não se tratava de uma montagem. Pelo sim, pelo não, todos se preparam. Mesmo porque ninguém crê que Fidel reassuma seu cargo de maneira completa. Acredita-se que possa ter uma sobrevida, mas é só. A transição é inevitável, e todos sabem disso. Por isso paira no país essa sensação de despedida. O clima depressivo foi sentido até mesmo na entrega de prêmios do Festival de Cinema de Havana, no mês de dezembro. Normalmente festiva, a cerimônia, várias vezes no passado prestigiada por Fidel Castro em pessoa, teve tom fúnebre, burocrático. Na platéia, um convidado de honra: o escritor Gabriel García Márquez, amigo pessoal do comandante, que não pronunciou uma única palavra e esquivou-se de entrevistas, como de hábito.

García Márquez esteve no festival para as comemorações de 20 anos da Escola de Cinema de Cuba, situada em San Antonio de los Baños, da qual é um dos fundadores e patronos. Mas os freqüentadores mais antigos notaram que várias personalidades de peso da esquerda européia, habitués do festival, como Ettore Scola, desapareceram de Havana. O comunista José Saramago rompeu com o regime de Castro há alguns anos. Não há mais um Sartre que se solidarize incondicionalmente com a revolução dos barbudos. Faz já alguns anos, os intelectuais engajados têm sido substituídos pelos turistas em Havana.

O turismo de massa foi uma das formas encontradas para contornar a crise econômica e hoje é a principal fonte de divisas do país. O que esses turistas encontram em Cuba, em Havana em particular, além dos mojitos, daiquiris e charutos incomparáveis? A simpatia extrema de um povo que se parece com o que foram os brasileiros 30 ou 40 anos atrás. E, de fato, tudo em Cuba se assemelha uma espécie de volta ao passado, com aqueles carrões antigos, prédios de outra era, cinemas imensos, aparelhos antigos, enfim algo que parece parado no tempo: a vida mais simples, carente, de poucas alternativas, raros produtos em oferta, escassez que talvez sirva como alívio temporário para o nosso frenesi urbano, que também cobra seu alto preço ao homem contemporâneo.

E, sim, Cuba fornece um último vislumbre da era comunista. Havana pode ser vista pelo turista como um parque temático da revolução, com seus cartazes antiimperialistas estrategicamente colocados em frente à representação comercial americana, o grandioso museu dedicado à façanha na Sierra Maestra, os outdoors patrióticos e lojas de souvenirs engajados. A moda atual é um boné verde, igual ao usado pelos guerrilheiros barbudos na campanha contra Batista. Muitos turistas o vestiam. Poucos deles, ou delas, pareciam ter cara de perigosos revolucionários comunistas. É modismo, apenas isso.

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Se o discurso oficial só fala em Fidel Castro, nessas lojas a figura que predomina é a de Che Guevara, cuja imagem emblemática, fotografada por Alberto Korda, estampa camisetas, bonés, chaveiros, canetas e vários outros gadgets. Vendem-se livros populares de Guevara, como os Diários da Bolívia e o manual prático Guerra de Guerrilhas. Depois de morto em 1967, na selva boliviana, o Che virou um sucesso, um ícone jovem da eterna rebeldia.

Quanto desse "espírito revolucionário", simbolizado pelo Che, é apenas um produto de superfície a ser oferecido aos visitantes, e quanto dele ainda estará entranhado de verdade no povo cubano, é o que se verá nos próximos meses e anos. Sobre a transição política da era pós-Fidel, existem os que acreditam que será rápida e radical, como deseja ardentemente a comunidade cubana exilada em Miami. Há os que acham que será lenta e gradual, porém inexorável em direção ao capitalismo e à democracia. E existem os que acham que na realidade ela já está acontecendo, como é o caso do historiador britânico Richard Gott, autor de Cuba - uma Nova História (Jorge Zahar Editor, 2006).

Gott diz que, enquanto observadores superficiais acreditam que Cuba seja uma gerontocracia, na verdade o poder decisório já passou para mãos de jovens talentosos, como Alarcón e Lage. Raúl Castro comanda o exército e Fidel é um chefe de Estado, agora envelhecido e doente, que simboliza as conquistas revolucionárias. Quando morrer, tudo prosseguirá no rumo já traçado. Mas estas são teses que ainda precisam passar pela prova dos noves da História, que costuma tornar risíveis as previsões dos profetas.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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