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Opinião|O som e a fúria em 'Dois Irmãos'

Minissérie de Luiz Fernando Carvalho baseada no romance de Milton Hatoum pode ser considerada um marco de qualidade na TV aberta brasileira

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

Terminou a minissérie Dois Irmãos e acho que já pode ser considerada um marco de qualidade na TV aberta brasileira.

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Durante dez capítulos acompanhamos a história da família libanesa moradora em Manaus, formada pelo casal Halim e Zana, os filhos gêmeos Omar e Yaqub e mais a irmã caçula Rânia. A eles juntam-se agregados, a índia Domingas e seu filho Nael, que se torna o narrador da história.

Já conhecíamos há muito a qualidade do texto do escritor amazonense Milton Hatoum. O romance agora é recriado no roteiro de Maria Camargo e na direção de Luiz Fernando Carvalho. Com as devidas adaptações, Maria optou por uma transcrição fiel. Já Luiz Fernando acentuou o tom paroxístico de algumas partes do relato e o espraiou para a história toda. Foi barroco como costuma ser, pois é seu estilo.

Desse modo criou quase uma ópera familiar de proporções bíblicas, em que o ódio entre os gêmeos fornece o fogo que a tudo e todos consome.

Não se pode dizer que a logística de tal produção seja simples. Espichada no tempo, engloba três gerações. Desse modo, os personagens têm de ganhar vários intérpretes. Halim, o patriarca, é vivido por Bruno Anacleto, Antonio Caloni e Antonio Fagundes. A mãe, Zana, por Gabriella Mustafá, Juliana Paes e Eliane Giardini. Os gêmeos, por Lorenzo Rocha, Matheus Abreu e Cauã Reymond.

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Há outros desafios. O principal é manter a tonalidade em chave alta sem deixá-la esmaecer. Temos então um clima que é do paroxismo amoroso e sensual, dos ciúmes e do ódio, dos conflitos e dos desejos proibidos, encenados no casarão familiar, este também um personagem da história e palco de um ambiente de intimidade calorenta que flerta com o incesto.

Os gêmeos brigam na infância pelo amor de Lívia (Monique Boursheid, depois Barbara Evans) e um deles abre um corte na cara do outro, deixando-lhe uma cicatriz. Yaqub é mandado para uma aldeia no Líbano e volta anos depois. Transforma-se em aluno exemplar e vai para São Paulo estudar engenharia. O outro, Omar, vira um estroina, bêbado, mulherengo, desagregador, autodestrutivo. No entanto, é o preferido da mãe. O enfrentamento entre os dois não arrefece. Apenas cresce com o tempo.

A narrativa em off, na voz de Irandhir Santos, vai costurando acontecimentos e empresta tom reflexivo a uma trama sempre pontuada pela paixão e pelo destempero. É como se visse tudo à distância, porém conservando o calor dos afetos em seu relato. Somente depois de passado o devido tempo encontram-se as palavras justas para expressar aquilo que, no momento em que se vive, é apenas paixão, confusão, dor, violência.É o ponto de vista do escritor. Mais tarde, Nael irá entrar em cena, já como personagem adulto, e participar da ação, sem perder a função de narrador.

Seria justo lembrar também que o drama familiar de Dois Irmãos não se passa no vácuo. A família evolui junto com os acontecimentos do país e do mundo. O pequeno negócio de Halim torna-se uma venda bem sucedida quando o ciclo da borracha enche a cidade de dinheiro. Ao mesmo tempo, e pelo mesmo processo, Manaus vai se degradando. As pessoas vão chegando e amontoando-se em palafitas pela periferia.

O país entra no pesadelo da ditadura militar e tudo isso rende o mais vigoroso dos dez capítulos, em que cenas de rua ficcionais mesclam-se a registros documentais, tudo ao som de Caminhando, o hino de protesto de Geraldo Vandré. É nesse capítulo que o professor poeta Antenor Laval (Michel Melamed) é assassinado pelos soldados durante uma manifestação de rua. A tragédia do país alcança Manaus e os próprios personagens, Omar em particular.

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O capítulo é emocionante, mas não é apenas isso. A partir dele, adivinha-se a tessitura da história e nota-se que esta não trata apenas de um drama familiar, embora possa ser lido nessa primeira camada. A tragédia do País pode, de certa forma, ser acompanhada na rivalidade sem remissão entre Omar e Yaqub. A polarização suicida a que chegamos, o vislumbre de um futuro promissor que se revela apenas ilusório, a decadência sem apelação - tudo isso pode ser lido nessa história de amor e ódio. A casa da família, cheia de personalidade própria, depois transformada numa loja vulgar, é apenas um detalhe a mais desse estreitamento de horizontes contemporâneo. Pode-se então dizer que o romance de Hatoum, lançado em 2000, seria premonitório, enquanto a versão atualizada na minissérie bebe direto no desalento brasileiro contemporâneo. Numa linha do romance, o narrador escreve "E o futuro, ou a ideia de um futuro promissor, dissolvia-se no mormaço amazônico". É lindo, e é triste.

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Vimos também grandes atuações. Cauã Reymond desdobra-se em tour de force para abarcar as personalidades contrastantes dos gêmeos. Halim ganha vida e intensidade nas atuações de Antonio Caloni e Antonio Fagundes, ambos ótimos. Porém cabe a Fagundes encarnar a grandeza da decadência, e transformar a saída de cena de Halim em algo inesquecível. A fogosa e dramática Zana é bem interpretada pelas três atrizes. Gabriella Moustafá é encantadora em seu frescor juvenil. Juliana Paes exala sensualidade. Cabe a Eliane Giardini dar tom patético mas cheio de ternura à agonia da mãe já envelhecida e sempre iludida pelo desejo de reunir os irmãos.

Nem tudo funcionou sempre bem. Algumas passagens de tempo pareceram pouco convincentes. O garoto Nael (Riam César) torna-se o adulto Irandhir, enquanto os gêmeos não dão sinal de envelhecer. Algumas sequências de Cauã como Omar estiveram próximas do limite aceitável do paroxismo e flertaram com o exagero. O som não esteve bem em alguns capítulos, dificultando a compreensão dos diálogos.

Mas nada disso comprometeu a grandeza da história e sua ambição de prestar-se a camadas de leitura que vão do superficial ao profundo. Uma história bem contada fala de si mesma e também de outras coisas. Esta nos falou do Brasil, de sua utopia frustrada de nação multiétnica, sensual e feliz. Um fino biscoito oferecido ao público, e que vai deixar saudades.

 

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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