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Cinema, cultura & afins

Opinião|O encanto eterno de 'Morangos Silvestres'

Um dos pontos altos da cinematografia mundial. Lembro-me ainda quando o vi pela primeira vez, numa cópia surrada, e saí do cinema cheio de pasmo e encantamento

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Atualização:

Morangos Silvestres, o road movie da existência humana Foto: Estadão

Escrevi o pequeno comentário abaixo para a reestreia, com cópia restaurada, de Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman. 

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Permitam-me uma recordação pessoal. Vi esse filme, pela primeira vez, numa cópia surrada num cineclube, acho que no Bexiga. Naquele tempo, o acesso aos filmes era difícil. O mais comum era que ouvíssemos falar deles, ou lêssemos a respeito, muito antes de os conhecermos de fato. Havia algo como uma antecipação do prazer de vê-los. Foi assim, para citar outra obra-prima, com Encouraçado Potemkim, de Sergei Eisenstein, que, além de raro, era proibido na época da ditadura. 

Mas de Bergman, pelo que me lembre, e deste Bergman em particular, eu pouco tinha ouvido falar. Não sabia quem era Victor Sjöström, o magnífico ator (e diretor) que interpreta o professor Isak Borg. Nada conhecia. Nada sabia. E assim, em meio à minha ignorante adolescência, lembro-me do pasmo ao ver esse filme. Na saída do cinema, pensava, atônito: "Então o cinema é capaz de chegar a essa altura?!". Eu, que desde a infância era cinéfilo, nunca havia visto coisa parecida.

Foi uma epifania, uma iluminação que me acompanha pela vida afora. Busco essa "altura" no cinema. Mas aprendi que é bem difícil alcançá-la. Só não podemos é nos contentar com a planície. 

 

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É bem possível que Morangos Silvestres (1957) seja o mais comovente dos filmes de Ingmar Bergman. Nele, o sueco  talvez não tenha flertado com a experimentação mais radical, como fez com Persona. Ou atingido o paroxismo da beleza como em Gritos e Sussurros. Mas Morangos Silvestres é possivelmente seu trabalho mais carregado de emoção. Mesmo quem vê muitos defeitos no filme, como a crítica da New Yorker Pauline Kael não lhe nega a virtude de cenas das quais não se esquece jamais. E nem esse sentido da sinceridade e da emoção que atravessam o filme do princípio ao fim.

Para quem ainda não o conhece, surge agora a oportunidade única de vê-lo em cópia restaurada, e na tela grande, para a qual foi concebido. Gente de geração mais antiga via esse filme em cópias esfarrapadas, em cineclubes, como se participasse de um ritual ou de uma missa laica em louvor do grande cinema. Agora é fácil. Há em DVD, qualquer um baixa no computador, mas, na tela grande, continua a ser uma experiência inesquecível.

Morangos Silvestres é a viagem em torno de si, ao longo de um único dia, do professor Isak Borg (Victor Sjöström). Ele é um velho médico que vai receber uma distinção acadêmica em Lund por seus cinquentas anos de exercício profissional. Na noite que antecede a viagem, tem sonhos estranhos. Ao acordar, decide ir de carro e não de avião. Leva consigo sua nora, Marianne (Ingrid Thulin), que está separada do marido. No trajeto, reencontra a casa de verão onde passou a infância. Dá carona a uma moça e três rapazes, e etc. É um Road movie. Existencial.

Na história há muito, muitíssimo, de Bergman. Borg é um homem gélido e descobre que pagará a frieza emocional com a solidão. São temas de Bergman e não por acaso. Ele também vinha de uma família emocionalmente fria e rígida. Ele próprio não escapava a esse aleijão afetivo, como testemunharam algumas de suas ex-mulheres. E não por acaso as iniciais do personagem, Isak Borg, são as mesmas de Ingmar Bergman. Borg é ele. Ou como ele se vê na velhice, pois tinha apenas 38 anos quando filmou. Já o grande ator e diretor Sjöström tinha 78 anos na época, mesma idade do protagonista.De qualquer forma, Morangos Silvestres é, também, um dos grandes filmes sobre a velhice jamais feitos, como Umberto D., A Balada de Narayama e Uma Viagem a Tóquio.

Mas a verdade é que vai muito além desses limites. A via crúcis do professor Borg rumo a si mesmo não diz respeito apenas a idosos, ou a qualquer faixa etária. Fala de todos e a todos, de maneira geral. Em sua viagem, Borg/Bergman revisita a paisagem um tanto estática do passado, com seu conjunto de traumas e alegrias, decepções e lembranças que não querem se apagar. Usa o sonho, a fantasia, a recriação desse mundo mágico e às vezes assustador como formas de acesso a si mesmo.

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Embora negue, Morangos Silvestres é bastante bafejado pela psicanálise, embora não de maneira técnica. O preto e branco contrastado empresta à atmosfera essa dimensão onírica. Bóia entre o real e o sonho. Embora profundo, o filme nunca perde esse liame emocional que toca o espectador. É dessas raras experiências cinematográficas capazes de tocar naquilo que Freud chamava "o âmago do nosso ser". Aliás, Bergman era obcecado, não tanto pela psicanálise, mas por essa experiência da profundidade, que ele sondou de maneira cada vez mais radical e corajosa ao longo de sua obra. Mas talvez nunca da maneira sensível e comovente como o fez em Morangos Silvestres.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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