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Opinião|O Amante da Rainha

 

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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 Foto: Estadão

O Amante da Rainha não é apenas o candidato da Dinamarca ao Oscar. É mais que isso, um filme de época que (quase o tempo todo) escapa à armadilha mais comum do gênero, a de parecer um museu da História, com direito ao inevitável cheiro de mofo. Nada disso. Ainda que um tanto acadêmico em certas passagens, tem frescor e energia. Deixa-se ver, portanto.

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O diretor Nicolaj Arcel monta uma estrutura em flash back para o seu relato. Assim, sabemos, desde a primeira cena, que existe uma rainha caída em desgraça, pois esta escreve uma desolada carta de exílio aos filhos. A história será a dessa rainha, Carolina Matilde (Alicia Vikander), casada com o rei Christian VII (Mikkel Boe Folsgaard), da Dinamarca, no século 18, quando os regimes absolutistas começam a ser contestados pelos ventos iluministas que sopram da França.

E então entramos na dimensão propriamente política da história, que se mescla ao drama amoroso. O rei exibe um comportamento um tanto esquisito e, para tratá-lo, chamam um médico alemão, Johann Friedrich Struensee (Madds Mikkelsen) que, além de remédios, traz ideias progressistas e um charme que não passa despercebido pela rainha Carolina. Estão criadas, portanto, as condições para que venha à tona esse algo podre que havia no reino da Dinamarca. Um rei insano, facilmente manipulável por cortesãos influentes. Uma rainha jovem e carente e um estrangeiro com ambições de poder e muita convicção sobre onde deseja chegar.

O quadro no interior do qual esse drama se desenrola é montado de maneira precisa. Direção de arte, figurinos, enfim, uma reconstituição de época impecável - tudo isso que pode ajudar o espectador a mergulhar num universo e tempo que não são os seus. Ou tudo pode ser apenas exibicionismo vazio, destinado à coleta de prêmios. Fiquemos com a primeira impressão. O luxo empregado para contar a história é justificado para que dela nos sintamos participantes, embora tanto formalismo por vezes engesse a narrativa. Um tantinho acadêmico, diriam os mais existentes, e não sem certa dose de razão.

Esse pequeno ranço não basta para atravancar a nossa percepção das condições da história e nem mascara o que ela tem de essencial. Isto é, o embate que se tece, por trás do romance proibido, entre as forças da razão e as do obscurantismo. Struensee seria apenas um reles conquistador, ou um alpinista social à moda antiga, não estivesse imbuído das ideias revolucionárias de Diderot, Rousseau e Voltaire. Ou seja, questiona a monarquia absolutista, a superstição e o atraso. Sua fé é na razão, e não na Igreja. Com essas convicções, consegue instaurar medidas práticas como a vacinação obrigatória, por exemplo. Ainda que o fato seja discutível do ponto de vista histórico,  justifica-se no quadro da narrativa. É medida progressista, tomada em época em que a saúde pública, aos olhos da nobreza, não valia um níquel.

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O mais interessante é a observação de que a vida política na corte (em todas as cortes e, possivelmente, em qualquer tempo) comporta-se como se seus agentes fossem atores e estivessem num grande palco. Como médico do rei, Struensee percebe que pode usar o histrionismo do monarca a seu favor, tornando-se dessa forma a figura mais poderosa da corte. Tem contra si o fato de ser estrangeiro e o caso extraconjugal com a rainha. No fio da navalha, deve operar como num jogo de xadrez para vencer. Essa é a batalha central de uma história realmente acontecida na Europa do século 18 e que foi fundamental para os destinos da humanidade. O século das luzes produziu efeitos em grande escala na luta contra o poder absoluto dos monarcas e da Igreja, com repercussões em toda a Europa e nas então colônias.

De resto, é a luta habitual entre quem  detém o poder e dele usufrui e outros que chegam com ambição e ideias diferentes. Acontece ainda hoje, mas no século 18 as coisas eram um pouco mais brutais. Arcel não esconde que, por trás do palco civilizado e das boas maneiras e punhos de renda, o teatro político sustenta-se com muito sangue.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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