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Cinema, cultura & afins

Opinião|Morre o cineasta Paulo Cezar Saraceni (1933-2012)

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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Morreu hoje, aos 78 anos, o cineasta carioca Paulo Cezar Saraceni, um dos nomes mais importantes do Cinema Novo. Sarra, como os amigos o chamavam, estava internado no Hospital Federal da Lagoa, onde se tratava das consequências de um AVC sofrido no ano passado. Morreu de falência múltipla de órgãos.

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Com seus dois primeiros longas metragens, Saraceni deixa sua marca decisiva na cultura dos 1960. Não se compreende essa época sem se passar por Porto das Caixas (1962) e O Desafio (1965). Um, fincado no terreno pessoal, dos afetos; outro, no político, e no social. Ambos mostravam um cineasta cheio de energia, ideias e disposição para a invenção formal.

Em 1968, dirigiu uma pouco convincente adaptação do romance de Machado de Assis Dom Casmurro, roteirizado pelo casal Lygia Fagundes Telles e Paulo Emilio Salles Gomes. Nem mesmo essa origem ilustre - o maior escritor brasileiro e dois dos melhores intelectuais patrícios - conseguiu salvar o filme. A protagonista Isabella, à época mulher de Saraceni, não ajudava no papel de Capitu, a heroína dúbia de Machado. Não tinha physique Du role. Dificilmente nela se via a moça esquiva, ambivalente, de "olhos de ressaca" de que fala Machado. Da mesma forma, o filme não tem de Dom Casmurro o maior mérito da obra, a sua ambiguidade permanente - a impossibilidade de saber com certeza se Capitu traiu Bentinho com Escobar ou se tudo não passa de distorção causada pelo ciúme doentio do narrador.

Por outro lado, Saraceni movia-se com familiaridade e acerto no universo de outro escritor, o mineiro Lúcio Cardoso, de quem adaptou o romance mais famoso, Crônica da Casa Assassinada (reduzindo o título para Casa Assassinada), em 1970. Carlos Kroeber fazia o papel principal.

Saraceni voltaria, quase três décadas depois ao universo decadente e atormentado de Cardoso com O Viajante (1999), adaptado de um romance inconcluso do escritor mineiro. No filme, Marilia Pêra tem um dos seus grandes papéis no cinema, como a viúva que sacrifica do próprio filho doente em nome do amante. É dos melhores filmes da época do cinema brasileiro conhecida por Retomada, quando a cinematografia renascia do estrago causado pelo governo Collor. É também um dos títulos mais intensos da carreira de Saraceni.

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Uma trajetória cuja importância já vinha dos tempos do curta-metragem quando, com Arraial do Cabo (1960) inspira toda uma estética ainda em gestação, e que viria a ser o Cinema Novo. Arraial do Cabo e outro curta-metragem, Aruanda, do pernambucano radicado na Paraíba, Linduarte Noronha cumpriram esse papel de abridores de caminho. Quis o destino que esses dois pioneiros, Linduarte e Saraceni, morressem no mesmo ano, com a diferença de poucos meses.

Cineasta de filmografia pouco numerosa, Saraceni ainda fez Amor, Carnaval e Sonhos (1972), Anchieta José do Brasil (1977) e Ao Sul do Meu Corpo (1982), este baseado no conto de Paulo Emílio, Duas Vezes com Helena, texto depois refilmado por Mauro Farias. Natal da Portela (1988) é uma interessante cinebiografia do famoso bicheiro carioca, interpretado por Milton Gonçalves. O filme, apesar da concepção original e de alguns momentos inspirados, é muito irregular.

Em 1993, Saraceni lançou o livro Por Dentro do Cinema Novo, no qual narra sua trajetória cinematográfica e pessoal. Como um coisa se confunde com a outra, a obra despertou polêmica. Rapaz bonito e atlético quando jovem (chegou a jogar no Fluminense), Saraceni era um assumido homme à femmes. Não escondia suas conquistas e, por isso, o livro provocou enorme tititi quando lançado. Prestou-se mais atenção ao que ele continha de revelações de alcova do que de revelador sobre os bastidores do Cinema Novo. É um documento de época importante, digno de ser relido com olhos menos moralistas.

Os destaques da obra de Saraceni são Porto das Caixas, com sua estética bastante moderna, retratando a solidão e a carência que levam ao crime, inspirado numa história real da crônica policial e baseado num roteiro original de Lucio Cardoso. A música de Tom Jobim completa o ambiente muito bem composto. Com as outras duas incursões à obra de Lucio Cardoso, A Casa Assassinada e O Viajante (ambos também musicados por Jobim) forma o quechamou de Trilogia da Paixão. São três exemplares perfeitos da imersão de um homem lúcido nas contradições e paroxismos do sentimento humano. Podem ser "lidos" como obra única.

Já com O Desafio (1965), Saraceni reflete sobre a posição do intelectual diante do golpe de Estado de 1964 através do personagem do jornalista interpretado por Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha. É obra a ser cotejada (não comparada, por favor) a Terra em Transe, de Glauber Rocha, que viria dois anos depois, em 1967. Ambas se complementam no pasmo como na tentativa de compreensão do golpe que instaurou a ditadura no País.

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Alguns dos seus últimos trabalhos foram no campo documental. Em 1996 terminou Bahia de Todos os Sambas, que fora iniciado por Leon Hirszman e jamais terminado, com imagens de Caetano, Gil, João Gilberto, Gal e Bethânia à Itália. Em Folia de Albino - a Banda de Ipanema (2003), Saraceni faz um registro doméstico de seu amigo Albino Pinheiro e das folias ipanemenses, que faziam a sua alegria. Simpático.

O último trabalho de Paulo Cezar Saraceni foi O Gerente, adaptação de um conto de Carlos Drummond de Andrade, cujo personagem tem o estranho hábito de morder mulheres. Permanece inédito no circuito comercial.

Com seu talento e inspiração, talvez Saraceni, em outras circunstâncias, poderia ter produzido obra mais extensa. Mas os entraves da produção cinematográfica no Brasil, aliados a circunstâncias da vida pessoal não permitiram. Mas por que falar do que poderia ter sido e não foi? O que ele deixou vale. E muito.

Principais filmes

Arraial do Cabo (1959/60). Curta-metragem. Documenta a vida dos pescadores, numa época de transformação que ameaça a sua sobrevivência

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Porto das Caixas (1962). Inspirado no chamado "crime da machadinha" conta a história de uma mulher que mata o marido em cumplicidade com o amante. Com Irma Alvarez, Reginaldo Faria

O Desafio (1965). Após o golpe de 1964, o jornalista Marcelo se sente impotente diante dos acontecimentos. Atravessa também uma crise amorosa. Com Oduvaldo Viana Filho e Isabella.

Casa Assassinada (1970). Chegada de Nina, uma jovem carioca perturba o marasmo doentio de uma família em Minas. Com Carlos Kroeber e Norma Bengell.

O Viajante (1999). Um homem de passagem seduz uma viúva de meia-idade que cuida do filho, nascido com problemas mentais. Com Marilia Pêra e Jairo Mattos.

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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