Infância Clandestina é tão bom que, vindo de uma cinematografia bastante badalada como a atual da Argentina, foi escolhido por seu país para representá-lo no Oscar. Em seu tempo, o filme de Hamburguer também foi designado pelo Brasil anos atrás. Parece haver, entre as comissões de seleção, a consciência de que o olhar infantil seja um fator que pode comover os tais "velhinhos da Academia". No caso do brasileiro não deu certo. Em janeiro veremos se o argentino tem mais sucesso.
Aliás, Brasil e Argentina são coprodutores de Infância Clandestina. A presença do País no longa hermano se dá de maneira marcante. O paulista Marcelo Müller é corroteirista, junto com o diretor Benjamín Ávila. Eles foram colegas na Escuela de TV y Cine de San Antonio de los Baños, em Cuba. Dois atores brasileiros - a paraibana Mayana Neiva e o paulista Douglas Simões - juntaram-se ao elenco.
E o Brasil é o país por onde passa a família de montoneros, exilada em Cuba, que decide haver chegada a hora de regressar à Argentina para participar da luta contra a ditadura militar. São eles, o pai (Cezar Troncoso, de O Banheiro do Papa), a mãe (Natalia Oeiro), o menino Juan (o ótimo Teo Gutiérrez Romero), e mais o tio Beto (Ernesto Alterio). Uma família clandestina, que se esconde atrás da fachada inofensiva de uma fábrica de doces, que fabricam e vendem. O próprio menino terá de mudar de nome - de Juan torna-se Ernesto -, além de arrumar sotaque de quem é proveniente de região de Córdoba.
Ávila conta que se inspirou na própria experiência de vida para escrever essa história. Ele mesmo foi filho de uma "família clandestina", que lutou contra a ditadura militar argentina e teve de exigir sacrifícios dos seus filhos. Sua mãe, Sara, foi presa e "desapareceu" em 1979. Ávila conhece na pele, portanto, o duro que é viver escondido, sob nome falso e ameaça constante das forças da repressão, com a morte sempre rondando por perto. E, nesse ponto, o longa argentino é bem diferente do brasileiro. Se em O Dia em que Meus Pais Saíram de Férias a ditadura é apenas pano de fundo insinuado, em Infância Clandestina as circunstâncias da política latino-americana dos anos 1970 aparecem de frente, e sem disfarces, com toda a sua violência. É, nesse sentido, um filme mais político e mais engajado.
Mesmo porque - e esse será um desafio para convencer o pessoal da Academia de Hollywood - a luta guerrilheira aparece sem meios tons. E sem qualquer sentimento de culpa, mesmo quando envolve crianças inocentes. Há um diálogo duro entre a mãe do menino e a avó. Ela diz que, se o pior acontecer, ela prefere que o menino seja criado pelos companheiros do que por uma carola como ela. Essa guerrilheira, tão dura como bela, é uma das figuras fortes do filme. Aliás, figuras fortes não faltam a esse drama bem construído.
O elenco é o ponto alto. O uruguaio Cezar Troncoso é muito convincente como o pai. O garoto também passa muita verdade (e Deus sabe como é difícil dirigir crianças), além da comovente figura do tio Beto, composto por Alterio de maneira tão humorística quanto trágica. De certa forma, há um antagonismo entre o pai do garoto e o seu irmão, Beto. O pai é um radical realista. O tio, uma espécie de sonhador da luta armada, e não no sentido negativo do termo. É homem cheio de imaginação e compaixão humana, que terminará vítima de suas melhores qualidades. A relação dele com o garoto é muito afetuosa e não se restringe ao campo da política. Pelo contrário, para o menino, o tio passa a ser um conselheiro sobre o segredo das mulheres, que ele parece conhecer muito bem - pelo menos é o que passa pelo imaginário do garoto.
Benjamín Ávila não faz de Infância Clandestina um filme apenas Mescla circunstâncias históricas à vida afetiva dos personagens. Em especial à do garoto Juan/Ernesto que, aos 11 anos, e apesar da precariedade de sua vida, começa a descobrir um estranho encantamento por uma colega de escola. Nessa alternância sensível entre o pessoal e o histórico está um dos segredos desse filme, exemplo de como ser duro sem deixar de ser delicado.