Foto do(a) blog

Cinema, cultura & afins

Opinião|Histórias da Psicanálise *

Hestórias da Psicanálise. Para começar, o título é assim mesmo: "Hestórias" da Psicanálise. Mescla "história" e "estória" - esta com sua conotação ficcional sancionada por Guimarães Rosa - Primeiras Estórias, Outras Estórias, etc. Como documentário, Hestórias procura fazer um balanço da descoberta de Freud, desde os tempos heróicos da psicanálise até a atualidade. Algumas perguntas funcionam como balizas e são respondidas por psicanalistas e estudiosos, brasileiros e estrangeiros: "Por que ler Freud hoje em dia?". "A psicanálise ainda é relevante, mesmo diante das neurociências?", etc. O filme é dirigido pelo psicanalista e pesquisador Francisco Capoulade. Sobre o documentário, deve-se dizer que, em muitos momentos, é visualmente monótono. As entrevistas sucedem-se, na base de talking heads (cabeças falantes). Em geral, enquadradas com estantes de livros atrás. É um vício de linguagem documental. Sempre que se entrevistam intelectuais (e psicanalistas não deixam de sê-lo), busca-se associá-los aos livros, estes signos do saber. Ok, só que fica repetitivo e vira um clichê visual. Mas, de maneira geral, o que eles têm a dizer é bem interessante. Em primeiro lugar, situando Freud em seu tempo histórico. Época cientificista, sendo ele próprio um cientista, mas que produz um saber que não se reduz à ciência, no sentido positivista do termo. Sendo a psicanálise uma disciplina da linguagem, é bem possível pensar que avance em paralelo às neurociências, sem que uma anule a outra. Nesse sentido, é significativo que a questão das traduções da obra de Freud ocupe grande espaço no documentário. Este foi sempre um problema, no Brasil e outras partes. Freud escrevia bem demais e era dono de estilo particular e nada dogmático. Ensaiava algumas hipóteses e avançava meio que hesitante, mas levando o leitor pela mão. Não fechava questões, pelo menos se elas não estivessem bem resolvidas em sua cabeça. E, mais de uma vez, terminou um ensaio de maneira aberta. Num deles, escreve, em latim: "non liquet". Não está claro. Quantos dos nossos pensadores contemporâneos teriam a coragem de terminar um ensaio dessa maneira? Pois bem, esse estilo todo próprio buscava os termos comuns da língua alemã. Evitava o jargão. O tradutor para o inglês, James Strachey, optou por uma versão "cientificista", cheia de termos técnicos, talvez para dar impressão de que a psicanálise fosse uma ciência natural. Com isso, engessou a prosa fluida de Freud. A primeira edição brasileira das obras completas de Sigmund Freud é baseada nesta edição inglesa. Por isso, muito criticada. Muitos psicanalistas dizem que se você leu Freud na edição brasileira da Standard, então não conhece Freud. Não cheguemos a tanto. Conhece um Freud, porém à inglesa e traduzido de segunda mão. Nos anos 1980, a psicanalista Marilena Carone deu início a um ambicioso projeto de tradução da integral de Freud (24 volumes, na Standard Edition), direta do alemão. Mas a morte precoce interrompeu o projeto. Anos depois, a CosacNaify lançou um volume com a versão de Marilena Carone para Luto e Melancolia, um ensaio fundamental. Quem agora traduz Freud direto do alemão é Paulo César Souza, também tradutor de Nietzsche. Ele é ouvido no filme. Essa polêmica da tradução pode parecer ao leigo uma questiúncula, mas na verdade é muito importante, uma vez que a psicanálise trata de questões da linguagem. Por isso, o tema foi tão abordado por Jacques Lacan em vários pontos de sua obra. Traduções tendenciosas ou simplesmente malfeitas deformam um pensamento e fazem-no dizer coisas que ele não diz. Em todo caso, deformado ou não, trata-se de um pensamento que, embora tenha origem no século 19 e início do 20 (Freud morre em 1939, um pouco antes do início da 2ª Guerra), diz muito sobre nossa atualidade. O que não surpreende. Fala do desejo, das inibições humanas e da possibilidade e limites de sua liberdade. Clássicos não morrem. São reinterpretados, de geração em geração. De modo a parte mais interessante e original de Hestórias da Psicanálise talvez seja a dos destinos das ideias de Freud no Brasil. Um entrevistado lembra que no Manifesto Antropofágico, Oswald de Andrade o cita. Cedo a psicanálise chegou ao Brasil e foi adotada por especialistas psi. Como em outros países, entrou para a cultura e para o senso comum. Trauma, repressão, Complexo de Édipo, análise, divã, significado dos sonhos, atos falhos - tudo isso vive na linguagem corrente das pessoas. Haveria uma especificidade brasileira nessa aclimatação da psicanálise? Um argentino, radicado no Brasil, parece dar a resposta mais interessante. Como se sabe, a questão da Lei é central para a psicanálise. Lei do Pai, da interdição do incesto, etc. "E o brasileiro tem uma relação problemática com a lei", diz Ricardo Goldemberg. Bom, basta acompanhar o dia a dia da política para ver como a lei brasileira é plástica e se amolda segundo interesses. Ainda não analisamos o suficiente os efeitos desse joguinho de cintura diante da Lei, torturada e interpretada ao sabor dos interesses de momento. Freud é atual.

PUBLICIDADE

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

  • texto integral

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.