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Opinião|História da Inteligência Brasileira

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

O projeto é obviamente desmesurado, para dizer tudo em uma só palavra: uma história completa da "inteligência brasileira", cinco séculos de esforço cultural de um povo, acomodados em sete espessos volumes, mais de 4 mil páginas compactas. Falamos, já se sabe, da grande (e controversa) façanha intelectual do crítico Wilson Martins (1921-2010), agora reeditada pela UEPG (Editora da Universidade Estadual de Ponta Grossa).

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Martins, crítico literário de vários jornais, 30 anos no Estadão, brasilianista na New York University e estudioso global da cultura, dá na História da Inteligência Brasileira o máximo de si, seu passo maior. Capta os primeiros sinais da inteligência nacional em 1555 "quando o padre Leonardo Nunes inicia os estudos rudimentares de latim no Colégio dos Meninos de Jesus, em São Vicente" e a dá seu trabalho por findo em 1960. Não porque a inteligência tenha sido abolida no começo da década mais convulsiva da cultura mundial no século 20, mas justamente porque se havia desenvolvido a tal ponto que ficava difícil acompanhá-la. Mesmo para um titã do pensamento, como alguns consideram Wilson Martins, com sua prodigiosa capacidade de leitura e não menos invejável disposição para a escrita.

Sobre essas qualidades, há controvérsias, como se costuma dizer, meio cinicamente, nas redações de jornais. Para se dar o justo valor da História da Inteligência Brasileira, não é preciso negar que nem todos apreciaram o esforço do crítico em dar conta dessa súmula tão heteróclita e complexa da aventura intelectual de um povo, que parece saída da pena de uma síntese de Bouvard e Pécuchet, os personagens de Flaubert empenhados em dominar o conhecimento completo do mundo.

Muitas foram as objeções ao projeto de Martins e à sua forma de concretizá-lo. Por exemplo, em 1979, o professor Silviano Santiago reconhece que a História é "em termos quantitativos, o empreendimento individual mais ambicioso redigido por um brasileiro". Mas se queixa de que seu conceito básico é eurocêntrico e institucional: "Elitista e livresca, idealista e bacharelesca, a inteligência só se exprime em português correto e literário". Assim, não é surpresa que a certidão de nascimento da cultura nacional seja assinalada por uma aula de latim. É que a "inteligência" de Martins se restringe ao mundo dos livros. Não pode assimilar ao projeto uma cultura autóctone e não-escrita, como a dos indígenas que aqui habitavam na chegada dos colonizadores. Santiago também se queixa da ausência de método numa história que se faz por acumulação e empilhamento. Nela, tudo cabe: "Antigos artigos de Martins são incorporados à "História" com a sem-cerimônia apontada no tocante ao aparato conceitual".

José Guilherme Merquior foi outro pensador que fez restrições à História da Inteligência Brasileira. Merquior diz que chegou a saudar o projeto, mas decepcionou-se com o resultado: "Revela a mais aflitiva falta de familiaridade com a história do pensamento e as técnicas de análise ideológica". Talvez para se vingar de Martins ter escrito mal de seus livros, Merquior aguça o florete e despacha o adversário com a frase lapidar: "Historiador das ideias, Martins não as tem". Touché.

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Essas considerações desfavoráveis não impediam que Martins tivesse seus admiradores entre intelectuais do porte de José Paulo Paes, do escritor Miguel Sanches Neto e do jornalista Paulo Francis. O volume e a ousadia do empreendimento faziam com que idiossincrasias de Martins fossem perdoadas, como por exemplo, o conservadorismo político e estético e a baixa estima que tinha por unanimidades nacionais como o poeta João Cabral de Melo Neto e o dramaturgo Nelson Rodrigues, a quem acusava de praticar uma "psicanálise de amador". É bom lembrar que nem mesmo a morte, que no Brasil, de modo geral, encerra a polêmica em torno de um personagem, foi capaz de tirar o nome de Martins do centro da controvérsia. Prova disso foi o artigo quem Flora Sussekind analisa os obituários a ele dedicados e conclui pelo conservadorismo da crítica literária contemporânea. Deve-se lembrar que houve respostas ao ensaio de Flora, mostrando que, mesmo depois de morto, Martins continuou a despertar controvérsias.

E assim prosseguirá por algum tempo o balanço de sua memória, em especial por ocasião de algum relançamento importante, como é o caso desta História da Inteligência Brasileira. Deixando entre parênteses a impressão causada pelo porte do projeto, nota-se o princípio exaustivo que o inspira. Martins usa e abusa da paráfrase e da citação. Faz uma compilação imensa do que se publicou de época em época, períodos enfileirados como vagões de um trem, por uma cronologia obediente. A compulsão de obras não vem a seco. Treinado por uma disciplina do comentário, que ele praticou desde sempre em seus rodapés literários, Martins comenta, ironiza, polemiza. Como escrevia de maneira clara e direta, a prosa tem sabor. Falta-lhe a consciência metodológica que lhe permitiria interpretar com maior profundidade, contextualizar e tirar conclusões mais gerais. Mas História da inteligência Brasileira fica como testemunho e compêndio de uma época da nossa cultura. De várias épocas, na verdade.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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