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Cinema, cultura & afins

Opinião|Gramado 2017. O enigma de 'Bio'

'Bio', filme do gaúcho Carlos Gerbase, conta a história fragmentada de um personagem que não se vê e é descrito apenas pelas pessoas que conviveram com ele

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:
 Foto: Estadão

GRAMADO - O gaúcho Carlos Gerbase lançou o segundo "objeto cinematográfico não identificado" do festival, Bio. (o primeiro foi A Fera na Selva). Filmes fora da curva, como se diz hoje.

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Bio é construído como um falso documentário (ou "documentário impossível", como diz seu diretor) em torno de um personagem que nasce em 1959 e vai morrer apenas 111 anos depois. Como se vê, o longa avança também sobre a fronteira da ficção científica.

Não sabemos sequer o nome desse personagem, mas, sim,sabemos que ele era incapaz de mentir. Sua vida é "reconstruída" em entrevistas com pessoas que o conheceram - seus amigos, colegas, mulheres e filhos. São 13 pequenos quadros, interpretados por 39 atores e atrizes.

Leva-se um tempo para entrar na história, mas, quando se consegue, a ficção te carrega a numa aventura narrativa super interessante. Muito bem fotografado, e com rostos de mulheres formidáveis como narradoras, do tipo Tainá Müller, Maria Fernanda Cândido e Maitê Proença.

O fascínio vem tanto dessa beleza na tela como da volúpia narrativa que, a meu ver, inspira-se em duas ideias muito férteis.

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Primeiro, a impossibilidade de reconstruir a vida "real" de um homem, mesmo com uma gama de depoimentos todos verdadeiros. Lembremos que essa hipótese está na base de Cidadão Kane, a obra-prima de Orson Welles.

Segundo, a presença desse dispositivo, que é uma espécie de premissa, a impossibilidade de de mentir.

Tentei perguntar sobre isso a Gerbase, mas o debate estava concorrido e tem gente que fala demais antes de fazer suas perguntas, assim não deu tempo para sanar a dúvida.

É o seguinte: Há um conto de Borges em Libro de Arena, acho que O Outro, mas posso estar enganado. Acontece nesse conto que o velho Borges senta-se num banco de jardim em Genebra e encontra-se com o jovem Borges. Ele mesmo, quando era jovem. Esse diálogo imaginário tem várias vertentes, mas de uma delas eu nunca esqueci. Diz o texto que é muito difícil conversar com alguém com quem não se pode mentir. Os velhos não podem mentir aos jovens que já foram.

Essa obrigação da verdade, tanto do personagem que nunca é visto, como dos que testemunham sobre ele, talvez dê um eixo estrutural a Bio. Se foi inspirado nesse texto de Borges, fico sem saber. Em todo caso, me ajuda a pensar este filme, que foi feito para ser revisto. E talvez mais de uma vez.

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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