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Opinião|Em 'Nebraska', um mergulho na América profunda

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Não existe dúvida de que Nebraska, de Alexander Payne, será definido como um filme de encontro entre pai e filho, tema que vai se tornando recorrente. E claro que é isso mesmo. Mas também parece evidente que vai além da questão familiar, embora ela esteja em seu centro maior de gravidade.

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As primeiras imagens, em panorâmica, mostram uma cidade fria, de grandes espaços vazios. Alguém avança penosamente. Um idoso. A polícia para e vai ajudá-lo. Logo ficamos sabendo de quem se trata. O octogenário Woody Grant (Bruce Dern) enfiou na cabeça que tem de viajar de Montana a Nebraska para receber um prêmio de um milhão de dólares, que ele supostamente ganhou. A família tenta dissuadi-lo. O papel que ele recebeu é apenas uma jogada de marketing. Mas quem tira uma ideia fixa da cabeça de um velho teimoso? Como ninguém quer levá-lo, e ele não pode mais dirigir, decide ir a pé. Por fim, o filho David (Will Forte) concorda em levar seu velho pai para receber o prêmio.

Com esse pequeno plot, vemos Nebraska assumir sua verdadeira condição. Torna-se um road movie, que em seu caminho escava raízes familiares e de amizade, e, de quebra, revela um lado dos Estados Unidos que raramente ganha as telas. E que, diga-se de passagem, não tem nada de charmoso, embora, para certos gostos, possa ser muito mais atraente que as imagens de cartão postal de Nova York ou São Francisco. É a América profunda que Woody Grant terá de atravessar em busca do seu prêmio, em companhia do filho. Uma América da qual ambos fazem parte. América taciturna, presa a valores antiquados, e na qual uma moral muito rígida convive alegremente com a violência, os preconceitos e o oportunismo.

Payne tem a boa sacada de mesclar, pelo menos de início, os registros cômico e dramático. Ri-se das pequenas rabugices de Woody, de suas manias de velho, de sua teimosia implacável. Ao mesmo tempo, existe um pano de fundo pouco engraçado na maneira como ele persegue a quimera na qual ele e apenas ele acredita. Há muito de verdade nos que definem a velhice como segunda infância. Não porque ela o seja de fato, mas porque as pessoas tendem a infantilizar os velhos, como nessa ilusão de "melhor idade" que as agências turísticas tentam vender. E, assim, como não se pode controlar o indomável Woody, a única coisa a fazer é acompanhá-lo em seu delírio para que ele próprio se convença do seu erro. Como uma criancinha.

Além do mais, são cômicas também as figuras que o caminho vai colocando na rota de pai e filho. O antigo sócio de Woody, que agora quer tirar uma casquinha; os sobrinhos estroinas, que passam o dia a beber cerveja e a falar besteira diante da TV; os ex-vizinhos e conhecidos de tempos atrás; uma antiga namorada que hoje dirige um jornal de província, no qual nada acontece - todos esses personagens entram na história com um grau de verdade que em geral encontramos apenas nos documentários ou na boa ficção. Muitos deles , atores naturais, amadores que interpretam seus próprios papéis. Não por acaso esse panorama é seco. Como secos são esses personagens, suas casas, os campos que rodeiam as cidades, as almas. Não poderia haver outra opção para esse retrato que a fotografia em preto e branco escolhida por Payne. Ela confere densidade ao clima opressivo do interior americano, àquela paisagem poeirenta no meio da qual nada parece acontecer mas, mesmo assim, serve de moldura para paixões e desejos nada exemplares. Há muitos anos atrás, em 1971, Peter Bogdanovich buscou um clima semelhante em seu A Última Sessão de CinemaNebraska vai na mesma linha.

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E, sim, é, também, celebração de um magnífico reencontro entre pai e filho. Como a dizer que, apesar de tudo, alguma coisa da ordem do afeto sobrevive entre homens e mulheres, entre pais e filhos, perdidos nesse mar de cinismo que nos torna progressivamente indiferentes uns aos outros. Há, por que não?, um toque de esperança nessa história tão dura.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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