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Opinião|Dossiê Jango: as dúvidas sobre a morte de João Goulart

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

Dia 6 de dezembro de 1976 morreu João Goulart, o presidente destituído pelo golpe de 1964. Doze anos depois ainda era um anátema para o regime militar. Tanto assim que as notícias de sua morte, ocorrida em sua fazenda na Argentina, saíram truncadas na imprensa brasileira. Em aparência, teve um infarto. O corpo não foi autopsiado.

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Até hoje as circunstâncias dessa morte não estão totalmente esclarecidas. Cardíaco, Jango teria sido vítima de um ataque fulminante. Mas há quem sustente que o envenenamento seria a verdadeira causa mortis. Teoria da conspiração? Talvez. Mas é em torno dessa dúvida que se constrói o documentário Dossiê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle.

Trilhando esse caminho original na filmografia brasileira, o filme enriquece a reconstrução trabalhosa dos anos da ditadura (1964-1985). Procura, em sua parte inicial, contextualizar a época e dispor em seus lugares os atores em jogo. Nesse sentido, segue a trilha do recente e também muito bom O Dia que Durou 21 Anos, de Camilo e Flávio Tavares. Resumindo: o governo progressista de Jango, que assumira com a renúncia de Jânio Quadros, era visto com desconfiança pelas forças conservadoras do País. E também pelos Estados Unidos, preocupados com a possibilidade de uma nova e gigantesca Cuba em seu quintal.

O filme avança ao centrar foco, em sua segunda parte, apenas em Jango e seu controverso desaparecimento. Mas é preciso dizer que a primeira parte, ao estabelecer a aliança entre civis e militares para a produção do golpe, e a presença dos Estados Unidos na desestabilização do governo, é bem precisa e didática.

O contexto em que se deu fornece material para desconfiança sobre a morte natural de Jango. Doze anos após sua queda, sabia-se que alimentava intenção de voltar ao Brasil, sem ainda saber como fazê-lo. Além disso, em 22 de agosto do mesmo ano, morria Juscelino Kubitschek em acidente de carro na Via Dutra. Em 21 de maio do ano seguinte, a vítima seria o ex-governador Carlos Lacerda. Três mortes em circunstâncias pouco claras, de antigos rivais que se haviam unido na chamada Frente Ampla pela redemocratização.

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Vivia-se a Guerra Fria e atentados a inimigos políticos não eram incomuns. Carlos Prats e Orlando Letelier, ligados ao presidente chileno deposto Salvador Allende, foram assassinados, assim como os uruguaios Zelmar Michelini e Gutierrez Ruiz, amigos de Jango, mortos na Argentina.

As suspeitas de assassinato de Goulart começaram a surgir logo após a sua morte. A tese era de envenenamento, pois o presidente deposto tomava regularmente três remédios para o coração. Os remédios, que vinham da França, teriam sido adulterados em operação conjunta da CIA e governos do Brasil e Argentina. Goulart era presença incômoda na Argentina, já também sob regime militar. Tudo faz sentido. Mas não existem provas.

O fato, relembrado por Fontenelle através de documentos e depoimentos, é que as dúvidas sempre existiram. Um empresário, amigo de Jango, Enrique Foch Díaz, escreveu um livro sobre o complô chamado João Goulart: O Crime Perfeito. Foch chegou a denunciar a viúva, Maria Thereza Goulart, de tomar parte no complô, segundo se lê em João Goulart - uma Biografia, do historiador Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense.

Em 2006, o caso voltou à tona com o depoimento do uruguaio Mário Barreiro Neira, que afirmava ter participado de uma certa Operação Escorpião, com o objetivo de matar Jango. Ao que parece, a testemunha não é lá muito fidedigna. Era um criminoso comum, recrutado pela repressão política no tempo da ditadura daquele país. Sua versão apresenta contradições. E não teria sido sustentada de modo desinteressado. Neira cumpria pena no Brasil e havia um pedido de extradição do Uruguai contra ele para responder por crimes comuns. Era seu interesse permanecer no Brasil alegando perseguição política do governo uruguaio. Em 2008 o Ministério Público acatou pedido da família Goulart para investigar a morte de Jango, tendo por base o depoimento de Neira. O Ministério Público concluiu pela falta de provas, tachando o depoimento do uruguaio de "confuso e contraditório".

Isso encerra o caso? Não, como indica Dossiê Jango. Se nada prova que houve assassinato, também não se pode provar a morte natural. O estudo dos costumes políticos das ditaduras latino-americanas não exclui o uso de violência na eliminação de inimigos. A dúvida razoável se adensa pela ausência de autópsia e das mortes quase simultâneas de JK e Lacerda. Para esclarecer essa rede de intrigas, apenas se a investigação for reaberta e, desta vez, exposta à luz da democracia.

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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