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Cinema, cultura & afins

Opinião|Diario do FAM 2014 'Manto de Fel' e a alegoria latino-americana

 

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

FLORIANÓPOLIS - Tudo é um tanto vago e nebuloso em El Manto de Hiel (O Manto de Fel), filme argentino de Gustavo Corrado apresentado ontem na Mostra de Longas Mercosul, seção do FAM. Um homem anda com seu carro (uma BMW) pelo deserto e para por falta de combustível. Tem de se socorrer num estranho povoado habitado por gente velha, com exceção de uma moça e sua filha pequena.

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A ideia do diretor é nos imergir numa sensação permanente de estranheza. O homem pede ajuda a dois mecânicos (mas seriam mesmo mecânicos?) enquanto tenta buscar hospedagem e comida. Logo na chegada, o fora pedir uma informação à moça e recebera uma bofetada como resposta. Há um senhor que tenta afinar um piano caindo aos pedaços e outros que passam o tempo a rir e articular frases misteriosas. Um segredo parece pairar acima de todos eles. Tudo ali parece caindo de podre, das paredes que desmoronam às relações entre as pessoas.

Bem, no princípio temos aquela impressão comum de que existe uma única pessoa sã - o viajante - e todos os outros são loucos. É a sensação do pesadelo. Falamos alguma coisa que parece bem sensata e os outros não entendem. Formulamos pedidos razoáveis e ninguém atende. Tentamos sair de cena, ir embora, e não conseguimos. É como se procurássemos nos mover num universo pastoso, através de uma geleia que impedisse nossos gestos e deslocamentos. Claro, nesse ambiente há um toque latino-americano de realismo mágico à la García Márquez, ou a estranheza completa do Rulfo de Pedro Páramo. É, de fato, como se o personagem ingressasse num território dos mortos e dali não conseguisse regressar. Depois, a própria pessoa que parecia sã resolve ingressar na lógica do lugar.

É preciso dizer também que o diretor logra colocar esse tipo de sensação não apenas através de diálogos, mas pelas ferramentas do dispositivo cinematográfico. Escolhe uma locação ideal, um ponto perdido no meio do deserto, construções em ruínas, piso de chão, um colorido terroso que diz muito do que está acontecendo. A par dessas qualidade, o filme se ressente do ambiente um tanto abstrato para se comunicar com mais facilidade com o público. O que existe por trás? Quem assistir ao filme verá que as alusões políticas não tardam em aparecer e têm a ver com a ditadura e a questão dos desaparecidos, ou assim parece.

Claro, a alegoria (pois é disso que se trata) tem lá sua força. Mostrada, aliás, desde os filmes realizados sob censura, quando era preciso falar de alguma coisa querendo-se falar de outra. Este deslocamento é uma das funções do discurso alegórico que, no entanto, paga seu preço quando em terreno de uma arte tão diretamente vinculada ao realismo como é o cinema. Não estou defendendo uma exclusividade realista, nem afirmando que o cinema não se pode mover no mundo mágico, alegórico, fantástico etc. A própria diversidade da produção demonstra que ele pode se movimentar em qualquer gênero. Mas o discurso da alegoria cobra o seu pedágio em descrença. A cumplicidade do público tem de ser conquistada a cada passo. E isso não é fácil.

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Curtas. Nos curtas, poucos destaques a não ser de filmes já exibidos em outros festivais, como Acalanto, bonita história de uma mulher analfabeta (Lea Silva) que pede a um homem (Luiz Carlos Vasconcellos) para que leia seguidamente uma carta enviada pelo filho distante há mais de dez anos. Filme de diálogo e também da imagem, dirigido por Arturo Saboia (Maranhão).

Tem seu encanto também Os Irmãos Mai, de Thais Fujinaga, sobre os irmãos chineses que deambulam pelo centro de São Paulo em busca de um presente para a avó. Os mistérios, e os encantos, da cidade grande e multicultural pelos olhos de dois meninos que representam o que São Paulo tem de melhor, a diversidade cultural.

Entre os novos, O Tempo que Leva, de Cíntia Domit Bittar (Santa Catarina), aposta no clima apocalíptico. O calor é insuportável, as ruas estão desertas as casas em ruínas e o bem mais precioso da personagem vivida por Jamila (Mayana Neiva) é um velho ventilador. Quando o aparelho pifa, ela vai pedir ajuda a um técnico meio maluquete interpretado por Ivo Müller. Tem seu clima, quero dizer, o filme.

No mais, o festival, apesar do mau tempo em Florianópolis, do frio e da chuva, tem seguido seu caminho muito bem. As sessões, realizadas numa bela sala, o Auditório Garapuvu, da Universidade Federal de Santa Catarina, têm estado lotadas, ao menos na programação da noite. O ambiente é legal, há shows musicais no intervalo das sessões e o público é predominantemente jovem e universitário. Isso faz bem ao cinema, em especial ao latino-americano, que não encontra lugar no circuito comercial.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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