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Cinema, cultura & afins

Opinião|Diário da Mostra 2012: o dinheiro e sua sombra

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

No cinema de Manoel de Oliveira há algo de intemporal que, paradoxalmente, se liga bastante, quando bem pensado, ao tempo presente. Essa característica dúbia fica bem evidente em O Gebo e sua Sombra, seu filme mais recente, apresentado em setembro no Festival de Veneza e agora trazido à Mostra.

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O velho mestre, de 104 anos, não foi a Veneza e nem agora vem a São Paulo. Teve uns problemas de saúde e os médicos lhe proibiram o avião. Mas, segundo os seus conhecidos, já está aprontando novo filme, para manter a média de um por ano. E este próximo pode ser baseado em A Igreja do Diabo, conto de Machado de Assis, como disse ao Estado o ator português Luiz Miguel Cintra, na Itália. "Ele está muito bem e trabalhando no roteiro de A Igreja do Diabo". Esperemos. Sem dúvida, a dubiedade de Machado neste conto em que o bem aparece apenas contra o pano de fundo do mal e vice-versa será inspirador para o cineasta.

De certa forma é também o que ocorre com Gebo e a Sombra, baseado numa peça dos anos 1920 do dramaturgo português Raúl Brandão. Gebo, contador e cobrador de uma firma, é interpretado pelo grande ator francês Michael Lonsdale. Sua mulher, Doroteia, é vivida por Claudia Cardinale. O filho, João, por Ricardo Trêpa, neto do diretor. A mulher de João, por Leonor Silveira. Jeanne Moreau faz uma vizinha intrometida. Leonor, Cintra e Trêpa fazem parte da trupe habitual de Oliveira. O resto do elenco dá ideia do prestígio internacional a que chegou o cineasta português.

A locação é única, a sala de uma casa modesta, onde Gebo, em seu caderno de anotações, faz e refaz cálculos, noite adentro, não sabemos exatamente com que propósito. Bebe café para se manter acordado e diz que trabalha tanto, apesar da idade, para que a família não morra de fome. Do filho, apenas se fala, no início. A mãe espera por sua volta. Não sabemos ao certo onde está, se partiu ao estrangeiro, se esteve na prisão, o que fez. Algo de bom não foi, a julgar pelo que dele dizem, entre sussurros, Gebo e sua nora, a quem trata de filha.

O ambiente é soturno. A fotografia, magnífica é construída de meios tons, como iluminada apenas pelos candeeiros que se veem em cena. É propícia para um ambiente no qual tudo é dito a meias, nunca diretamente, porque se trata de preservar, acima de tudo, a figura da mãe, que pede notícias do filho. Este, quem será? Um herói, um ladrão. Mas os filhos não são sempre heróis para suas mães?

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Gebo é, então, um mantenedor do mito materno. Consagra sua vida a isso. Uma vida miserável, a bem dizer, feita de pobreza, privações materiais e morais porque tem sempre de se consagrar a esconder alguma coisa de alguém.

A certa altura da trama, o espectador fica bem curioso para saber afinal quem é este João, de quem se fala e não se vê. Verdade, ele pode ser um criminoso. Mas pode ser também um ser da liberdade. Num espaço cênico (convém defini-lo assim) em que tudo se assemelha a uma prisão, o filho parece ser o único com possibilidade de ser definido como livre. Não à toa, os planos iniciais do filme mostram a imagem de um porto, um navio que parte. Há toda uma simbologia associada à embarcação, a viagem, ao deixar para trás tudo aquilo que significa um grilhão para o homem. Ver novas terras, conhecer novas pessoas. Não acaso, o narrador de Moby Dick, Ismael, dizia que quando o pensamento da morte vinha lhe assaltar, embarcava depressa no primeiro navio que encontrasse. É uma imagem bastante presente na literatura e também no inconsciente coletivo humano.

Manoel trabalha fundo nessas relações inconscientes. Depurou tanto seu estilo que, num filme como esse, contenta-se quase com a locação única, sem disfarçar a origem teatral do texto. Essa simplicidade da mise-em-scène não esconde o que existe de profundo na obra. Antes, ressalta essa complexidade, remetendo a uma pobreza à la Dickens e, acima de tudo, a onipresente relação ao dinheiro de que falava Balzac. É o dinheiro que comanda todas as ações e sentimentos, assim como o destino dos personagens. Se Gebo e a Sombra, como disse Manoel, é um drama sobre a honestidade, é também sobre a cobiça. Sempre há essa dubiedade nos assuntos humanos.

 

SESSÃO DATA SALA
535 24/10 - Quarta-feira - 21:30 CINESESC
990 29/10 - Segunda-feira - 17:00 Cinemateca - Sala BNDES
1084 30/10 - Terça-feira - 22:40 Livraria Cultura - sala 1
1145 31/10 - Quarta-feira - 19:00 Espaço Itaú de Cinema - Frei Caneca - Sala 3

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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