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Opinião|Comédia à italiana

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Durante uns 20 anos, da metade dos anos 50 a meados dos 70, um gênero, a comédia à italiana, fez sucesso em seu país e no exterior. Fazia rir, esboçava uma sátira social inteligente e uma reflexão humana adulta. Era, como se diz, agridoce. A caixa da Versátil Clássicos da Comédia Italiana traz três dos mais significativos desses filmes - Divórcio à Italiana e Seduzida e Abandonada, ambos de Pietro Germi, e Os Eternos Desconhecidos, do mestre Mario Monicelli.

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Nos elencos, atores conhecidíssimos, como Vittorio Gassman, Marcelo Mastroianni, Totò, Stefania Sandrelli, Claudia Cardinale e Lando Buzzanca. Muitos desses atores trabalharam nas obras dos mestres italianos que começavam a dominar o cinema de autor da época, como Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, Luchino Visconti. Formavam o star system da Itália, cujo epicentro era Cinecittà, em Roma. Durante sua fase de ouro, o cinema italiano se equilibrava entre obras de grande prestígio artístico e filmes mais populares, que não deixavam de ter inteligência e senso crítico. Há, entre eles, algumas autênticas obras-primas. Grandes autores que se dedicaram quase exclusivamente ao gênero, como é o caso de Mario Monicelli.

É dele Os Eternos Desconhecidos (1958), sátira hilariante aos filmes de assalto - há entre eles alguns clássicos, como O Segredo das Joias, de John Huston, com o qual Monicelli parece dialogar. Se em Huston o tema do assalto frustrado conduz ao trágico, em Monicelli leva à paródia, à ironia, e também à compaixão pela fragilidade dos pequenos. Na história, malandros pés de chinelo tentam assaltar o cofre de uma casa de penhores, entrando pelo apartamento ao lado. O bando é formado por um ex-boxeador, um ladrão aposentado cuja mulher cumpre pena, um fotógrafo trapalhão, um velhinho que só pensa em comer. O especialista em cofres é ninguém menos que Totò, caricatura do "professor" do filme de Huston.

Monicelli mostra como tirar graça de situações aparentemente simples, através de diálogos primorosos e escritos com naturalidade. Neste, como em outros títulos da commedia all'italiana, os personagens falam com seus sotaques e dialetos de origem, compondo o quadro de uma Itália diversificada e contraditória, em que Norte e Sul se desprezam e se atraem. Em filmes cômicos como Os Eternos Desconhecidos fica explícita a raiz neorrealista que inspira o diretor.

Será o caso também dos trabalhos de Germi presentes na caixa, partes de uma trilogia siciliana (faltou o último, Signore & Signori, 1965). Divórcio à Italiana (1961) traz o barão Fefé Cefalu (Mastroianni) entediado em seu casamento de 12 anos com Rosaura e apaixonado pela prima Angela (Stefania Sandrelli). Como não há divórcio na Itália, ele não vê melhor solução do que incitar a esposa ao adultério e assim poder matá-la com o atenuante da "defesa da honra". Mas, para isso, terá de tornar-se um cornuto, o que é um anátema na cultura machista da Sicília.

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Em Seduzida e Abandonada (1964), a questão é outra. A adolescente Agnese (Sandrelli, de novo) é seduzida por Peppino (Aldo Puglisi), noivo de sua irmã mais velha, e fica grávida. O pai, Vincenzo (Saro Urzì, estupendo) quer obrigar Peppino a se casar com Agnese, enquanto arruma um barão falido (Lando Buzanca) para confortar sua filha mais velha.

Em entrevista, Pietro Germi explica por que ambientou esses filmes na Sicília não para fazer uma caricatura da ilha. Na Sicília certas características aparecem de maneira mais nítida. Mas são características de toda a Itália. "Todo italiano é siciliano, e os sicilianos são duplamente italianos", diz. Uma questão de grau.

A Itália do pós-guerra vive a reconstrução e o boom econômico. Deve se modernizar, mas vive presa a estruturas arcaicas. As noções de honra, tradição e hierarquia social rígida continuam a pesar, assim como o domínio machista sobre as mulheres, reduzidas aos papéis tradicionais de mammas e esposas fiéis. Tudo isso começa a conviver com seu contrário, o que gera uma fricção culturalmente estimulante para o país. Essa é a contradição que as comédias à italiana captavam com humor. A Itália dilacerada entre o desejo de evoluir e o de permanecer a mesma.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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