Voltando a Tio Boonmee: no DVD, com extras, temos o curta que inspirou o longa,Uma Carta para Tio Boonmee (18 minutos), uma entrevista com o diretor, mais cenas excluídas da versão final e trailer, além de um folheto com um pingue-pongue com o diretor. Nele, Apichatpong conta que ouviu falar desse tal de Boonmee num mosteiro. O homem teria relatado ao monge ser capaz de se recordar de suas reencarnações. Posteriormente, Boonmee publicou um livro relatando suas experiências, e o cineasta o leu.
Como, segundo o que Apichatpong diz, e não há motivo para duvidar, não consegue ser fiel às suas fontes, não se pode falar de uma adaptação. Ele toma uma situação, descrita pelo autor, e, através dela, reconstrói o mundo a partir da sua própria sensibilidade. No entanto, o espírito da obra, digamos assim, é o de um filme sobre a reencarnação. E também sobre o rico fabulário oriental. O talento de Apichatpong consiste em recriar na tela, e para públicos de outro registro cultural, o ambiente mágico de que falam aquelas pessoas.
Na história, Boonmee está morrendo de insuficiência renal. É viúvo, vive em sua fazenda e conversa com a cunhada. Mas não é com grande surpresa que, na mesa de jantar, recebe a visita da mulher, morta há 19 anos. Ou do filho, sumido também há muito tempo, e agora transformado numa espécie de macaco-fantasma cujos olhos brilham na escuridão. Tudo é estranho nesse cinema, forjado com imagens preciosas, lentas, como em busca de um tempo que já não é mais o nosso. Nessa pequena história de Boonmee, intercala-se a fábula de uma princesa que aspira à perfeição do seu reflexo nas águas. E, para realizar esse desejo, entrega-se à figura mitológica de um peixe do rio.
Estamos, portanto, no universo mágico, em que mortos frequentam vivos com naturalidade e até os ajudam na hora de desencarnar. Pessoas transformam-se em macacos caso mantenham relações sexuais com eles, e seres imaginários espreitam a cada canto da floresta. Tudo poderia parecer inverossímil, ou risível, não fosse a delicadeza com que essa magia brota da tela. O registro cinematográfico também não é unívoco. Apichatpong vai de um estilo dos velhos filmes em 16 mm a filmes B, baratos, histórias de monstros feitas com poucos recursos e baseadas em crendices populares. Mostra também cenas em fotos fixas de um vilarejo ao norte do país, onde histórias violentas aconteceram. A inspiração, aqui, é em La Jetée (1962), de Chris Marker, média-metragem (28 minutos) de ficção científica dos mais influentes da história do cinema. Até mesmo Tio Boonmee introduz a política em sua fala, mesmo que de maneira enviesada. "Essa minha doença é um carma", diz ele à cunhada. "É porque matei muitos comunistas." Ela o consola: "Você matou, mas com foi com boa intenção".
Essas frases são ditas em tom suave. Entram na narrativa como comentários alusivos, num clima de crescente abstração. O mundo existe, ele está lá com suas exigências e limites. Porém, pouco a pouco é como se dele nos afastássemos, à medida que vamos entrando em outra dimensão. Esse é o encanto zen de Tio Boonmee, Que Pode Recordar Suas Vidas Passadas. Ele não se impõe com uma determinada filosofia que precisa conquistar ouvintes e seguidores. Ele é essa própria filosofia.