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Cinema, cultura & afins

Opinião|'Boi Neon', obra de exceção

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Há algumas ideias progressistas que orientam a trama de Boi Neon, novo longa de Gabriel Mascaro. Entre elas, a ideia de questionar papéis sexuais rígidos, o que implica em desfazer estereótipos. Outra: presta atenção às novas composições familiares, que mantêm suas funções reprodutivas e afetivas tradicionais sem precisarem obedecer ao esquema mamãe-papai-filhinho. Há também uma visão moderna e modernizante a respeito do nordeste, não mais visto como nos tempos do Cinema Novo ou do ciclo do cangaço.

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Enfim, o pernambucano Mascaro obedece ao mandamento de todo artista - se é para fazer, é melhor fazer algo que ninguém tenha feito. Make it new, como dizem os vanguardistas. E isso não se refere somente à linguagem artística empregada, mas à própria articulação e tratamento dos temas propostos.

O que temos em Boi Neon é o mundo das vaquejadas, na qual um vaqueiro (Juliano Cazarré), competentíssimo no trato com os animais, é, acima de tudo, um costureiro de mão cheia e aficionado da moda. Ou a caminhoneira vivida por Maeve Jinkings, mecânica hábil com suas ferramentas e que, nem por isso, perde sua feminilidade. Há outro vaqueiro que se junta ao grupo, Júnior (Vinícius de Oliveira, de Central do Brasil), metrossexual perfeito, muito preocupado com perfumes e com seus longos cabelos.

Em entrevistas, Mascaro tem dito que não se trata de inverter clichês associados ao sexo dos personagens, mas trabalhar com a expansão dos gêneros. Proposta política, ousada, esclarecida e que, em termos artísticos, se expressa sem artificialismos. A narrativa dá conta de uma história crível, embora pouco usual. Ou seja, não acontece aqui uma falha muito comum a filmes de tese, esses que têm uma ideia a demonstrar e colocam os personagens a serviço dessa prova, muitas vezes de forma mecânica. Em Boi Neon, os personagens parecem todos, sem exceção, verossímeis, com vida própria e sujeitos a contradições. Por isso mesmo, podem provocar, no espectador, essa sensação de deslocamento que leva a refletir e questionar seus próprios pontos de vista.

Da mesma forma, as locações pouco têm a ver com as do Nordeste tradicional, como ele foi pintado pelo Cinema Novo, com a seca, a miséria, os conflitos de terra. Um momento, porém. O Cinema Novo e seus clássicos (Deus e o Diabo na Terra do Sol, Vidas Secas, Os Fuzis, Cabra Marcado Para Morrer) não falsificava nada, é bom dizer antes que algum revisionista aventureiro venha assacar contra Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Eduardo Coutinho. O campo nordestino, com suas condições geográficas adversas, e imensas disparidades sociais, se mostrava palco perfeito para encenar as desigualdades do Brasil como um todo. Nada disso era ou é falso. Pelo contrário. Boi Neon, no entanto, abre espaço para outras vertentes. Filmado em cidades como Picuí, Santa Cruz do Capibaribe, Caruaru e arredores, põe em cena o mundo das vaquejadas e do polo têxtil do agreste. Abre o leque de percepção, simplesmente, e atualiza esse recorte com o diálogo entre o regional e o global. Boi Neon é uma coprodução entre Brasil, Uruguai e Holanda e conta com participação de artistas e técnicos de outras nacionalidades. Nem por isso é daqueles produtos globais, chicletes para todos os gostos e nenhum. Mantém sua autenticidade.

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Talvez até por isso mesmo tenha sido bem aceito no âmbito internacional. Participou da seção Horizontes do Festival de Veneza e ganhou o Prêmio do Júri. Tem recebido críticas positivas da imprensa internacional (como Variety e Hollywood Reporter) e agradado em outros festivais. Visualmente bonito e intenso, evita o esteticismo de que padecia Ventos de Agosto, trabalho anterior de Mascaro. Boi Neon é um filme de equilíbrio, embora não perca a força e o destempero que o tornam uma obra de exceção no cinema brasileiro contemporâneo.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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