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Opinião|Aruanda 2017. Cinema de Poesia

O Fest Aruanda apresentou dois exemplares pouco convencionais como Antes do Fim, de Cristiano Burlan, e Lanterna da Aurora, de Frederico Machado

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

 

 Foto: Estadão

João Pessoa/PB Rótulos às vezes mais atrapalham que ajudam. Mas é meio inevitável recorrer a um deles - "cinema de poesia" - para se referir à sessão dupla de ontem no Fest Aruanda, que exibiu os longas-metragens Lamparina da Aurora, de Frederico Machado (Maranhão) e Antes do Fim, de Cristiano Burlan (São Paulo).

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Não espere deles uma narrativa convencional, daquelas que cabem numa sinopse. Trabalham, antes, com sugestões, personagens ambivalentes e misteriosos, fotografia sensorial, trilha sonora inquietante e, claro, maior abertura para interpretações particulares do que as obras ditas normais.

Em Lamparina da Aurora, temos um casal já entrado em anos (Vera Leite e Buda Lira), que mora numa casa antiga e recebe visitas ocasionais de outro personagem, mais jovem (Antonio Sabóia). Houve quem visse no trio uma representação bíblica: José, Maria e Jesus. Mas a relação é muito mais carnal que as descritas nos Testamentos. Pode ser; pode não ser.

De tempos em tempos, ouve-se uma voz declamando versos inquietantes. Descobrimos que é a do poeta Nauro Machado, com vários livros publicados e já falecido. É o pai do diretor, que dedica a ele o filme. O próprio Frederico considera o pai muito influenciado pela poesia do paraibano Augusto dos Anjos, conhecido por sua morbidez, profundidade, imagens fortes para descrever a putrefação das coisas, o ciclo inevitável da vida e do fim, o peso do tempo, a relação do homem com a sua morte e a morte das pessoas que o cercam.

O filme produz uma impressão forte e duradoura. Temos aí um autor, com pegada original, gerando uma obra que não se parece a qualquer outra. O filme está em cartaz em São Paulo. Vale a pena ver.

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 Foto: Estadão

 

Antes do Fim parece estilisticamente bem diferente, mas as fontes de inspiração apresentam pontos em comum. Se Lamparina da Aurora fixa-se no ambiente rural, mais propício a mistérios e terrores da noite, Perto do Fim enraíza-se no território urbano, com personagens tentando dar um toque humano e pessoal a um ambiente mais chegado à agressiva impessoalidade.

Mas, a exemplo do que ocorre em Frederico Machado também no filme de Burlan um casal de velhos assume o protagonismo. São vividos por Helena Ignez e Jean-Claude Bernardet. Este faz um bailarino que, ao completar 80 anos, decide-se pelo suicídio e pede a colaboração da esposa.

Vemos os dois em diversos momentos e ambientes. Caminhando pelas ruas da cidade, passeando pelo cemitério, numa sequência cômica com um vendedor de caixões, numa farmácia comprando Viagra, lendo na cama, discutindo Camus e, numa passagem sublime, com as roupas estufadas pelo vento em uma colina. Pura pintura visual deste filme em preto e branco, porém com um arco afetivo e musical coloridíssimo.

No debate, muito rico e estimulante, Burlan citou Juan Rulfo para falar do seu cinema. A meu ver o mexicano, autor de Pedro Páramo, caberia melhor no mundo de Frederico Machado e seu universo de mortos de Lamparina da Aurora não faria má figura em Comala, a cidade imaginária do romance.

Ambos filmam com muito rigor, e a obra de Burlan parece mais aberta ao improviso que a de Machado. Não por acaso, respondendo a uma pergunta que fiz, Burlan citou o bebop e sua rigorosa estrutura de entrada que, em seguida, se abre para o improviso radical dos músicos - lembremos Charles Parker e John Coltrane, para ficar em dois monstros.

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De tal forma que o cinema, assim concebido, se torna uma arte muito livre, no qual cabem diversas coisas, de digressões do autor a colaborações da equipe técnica e do próprio elenco. Sentimos, às vezes, preocupações e temas que são de Bernardet e Helena nos personagens que encarnam. Isso não diminuiu o teor de invenção; pelo contrário confere consistência de vida vivida a ela.

Enfim, foi uma sessão dupla muito especial, da qual o espectador pôde tirar um belo material para o exercício de sua imaginação. Foto: Estadão

Clássico revisitado com problemas.

Houve polêmica na projeção de Os Fuzis, obra-prima de Ruy Guerra, o principal homenageado do festival. Ruy queria que a cópia exibida fosse a completa, com os 20 minutos subtraídos pelo produtor na época do seu lançamento. Ao perceber que a cópia seria a cortada, Ruy retirou-se em protesto do cinema. Minutos depois, tentou-se interromper a sessão. Em vão, pois o público não arredou pé. Como solução, a organização do Aruanda programou para segunda-feira às 10h30 nova sessão de Os Fuzis, desta vez com a versão do diretor.

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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