O "abutre" trabalha em grupo. Faz parte de um esquema de advogados, com conexões com a polícia. Um deles, o mais voraz e capacitado para sua atividade predatória, é Sosa (Ricardo Darín). Ele tem o instinto do sangue - sabe como se aproximar das famílias e fazer com que assinem a procuração que lhe dá poderes para representá-las diante das companhias de seguro. Sosa é um advogado que perdeu sua licença por algum motivo. Sobrevive desse modo. Tem lábia, mas não escapa de tomar umas pancadas de familiares mais sensíveis, e é assim que o filme começa.
Seus problemas não terminam aí. Só começam, na verdade, quando ele conhece uma médica de pronto-socorro, Luján (Martina Gusman, mulher de Trapero), que também não deixa de ter seus sérios conflitos internos. O filme se desdobra nesses dois planos - por um lado, as atividades de Sosa, em confronto com o grupo do qual faz parte; por outro, o relacionamento nascente entre ele e a médica, ligação que sofre as consequências do tipo de atividade que desenvolvem, porém se situando, cada qual, de um lado diferente do balcão.
O que interessa mesmo ao espectador está tanto nos temas tratados como na fluência com que Trapero os desenvolve. Há um começo de grande impacto, em que os diálogos são mínimos e o diretor confia de maneira total na força das imagens. Todo um desenho do que virá se transmite naquelas primeiras cenas. Em preto e branco, fotos paradas de acidentes na apresentação dos créditos e, depois, em cores, um homem sendo espancando durante um velório. A partir daí, o clima sobe lá em cima, e não cai. Quando entram os diálogos, eles são inspirados, naturais, sem impostação; podemos não ser familiares ao modo de falar portenho, mas são diálogos que nos parecem naturais. Claro que ajuda muito o fato de o ator principal ser Darín, capaz de fazer soar de modo coloquial um manual de jurisprudência.
A história é contada de um ponto de vista instável, porque apoiado na areia movediça da ambivalência dos personagens. Sosa faz um trabalho repulsivo, e nem por isso deixamos de simpatizar com ele. Luján é uma gracinha, mas, como o espectador vai descobrir, também tem lá suas zonas cinzentas, suas áreas de luz e sombras, como todo ser humano normal jogado numa situação de estresse permanente. São personagens críveis, gente como a gente, com suas grandezas e baixezas. Gente que faz, mas também gente que falha. Seres humanos, e não heróis. Quer dizer, Abutres é cinema para adultos, não uma dessas fantasias piedosas que Hollywood costuma despejar nas telas, e que mistificam a condição humana em vez de iluminá-la. É esse o trabalho contínuo que Pablo Trapero vem realizando, em filmes como Mundo Grua, Família Rodante, O Outro Lado da Lei e Leonera.
É autor que merece atenção. Tem o que dizer ao mundo. E sabe como dizê-lo.
O filme abre hoje a Mostra Direitos Humanos, no Cinesesc