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Opinião|'A Qualquer Custo' ou o que é roubar um banco perto de fundar um banco?

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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Em sua coluna, Mario Sérgio Conti diz que A Qualquer Custo, de David Mackenzie, era o filme mais politizado do Oscar.

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Em seu blog, citando Conti, Inácio Araújo diz a mesma coisa.

Eu também, quando vi o filme, fiquei muito bem impressionado. Coisa de adulto, A Qualquer Custo vai à raiz da questão bancária que levou muita gente a perder suas propriedades e economias nos Estados Unidos em 2008. Além de espalhar pelo mundo uma crise financeira que ainda não terminou.

No original, o título é Hell or High Water. Significa que se vai fazer determinada coisa, a despeito de qualquer dificuldade. Nem que chova canivetes, diríamos.

Enfim, é uma história de dois irmãos, um divorciado e desempregado, outro egresso da prisão, que tentam juntos salvar o rancho da família, ameaçado depois da morte da mãe. O banco quer tomar a fazendola, que está hipotecada, e tem razões para não desejar que a dívida seja quitada. Parece que há petróleo naquelas terras.

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Estamos no Texas e, portanto, na América profunda. Há duas cenas bem bacanas que definem todo um ambiente, digamos assim, cultural. Na primeira, durante um roubo, um dos assaltantes pergunta a um velho cliente do estabelecimento se ele está armado. Ofendido, o homem responde que sim, claro, está de posse de sua arma, como qualquer ser humano normal. Noutra, numa lanchonete de beira de estrada, uma velha garçonete pergunta aos clientes o que desejam e vai logo adiantando que a pergunta é mera formalidade. "Aqui só servimos T-Bone steak". Só bife, que é comida de macho. Depois, rindo, ela conta a história de certo forasteiro, vindo de Nova York, que teria ousado perguntar se eles tinham truta. Coisa de efeminado, por certo.

Os dois irmãos são Tanner Howard (Ben Foster) e Toby Howard (Chris Pine). Um deles é um pouco mais racional, o outro, porém, é como nitroglicerina pura andando numa estrada cheia de buracos. Como ambos se sentem ameaçados pelo setor bancário, não precisam pensar muito para descobrir de onde tirar dinheiro para pagar a hipoteca.

Apenas que, no meio do caminho, surge o Texas Ranger veterano, Marcus Hamilton (Jeff Bridges). Com seu parceiro meio índio, Hamilton tenta fazer daquela missão o fecho digno de sua carreira. Afinal, está doente e em vias de aposentar.

Esse veterano, que encarna a ordem do mundo quanto tudo o mais parece sair dos eixos, não chega a ser uma novidade. Mas não é mais uma ordem idealizada e sim algo já comprometido e corroído por alguma desordem mais fundamental. Quem conhece o clima dos romances (e dos filmes neles inspirados) de Cormac McCarthy sabe do que estamos falando.

Ora, naquela paisagem dura do Texas, o que o filme vai insinuando é que as coisas saíram dos eixos de vez. Mas não apenas porque dois pobres diabos resolveram fazer pelas próprias mãos aquilo que lhes parece justo. Mas porque a própria noção de Justiça parece corroída por dentro, como uma peça infestada de cupins. Desde Os Imperdoáveis, de Clint Eastwood, não se fazem mais westerns ingênuos. A velha dicotomia Lei x Crime parece, senão abolida, pelo menos muito mais complicada e nuançada.

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De fato, como sustentar uma ética do trabalho e da poupança se alguns jovens espertalhões de Wall Street podem botar uma nação de cabeça para baixo com seus golpes milionários? E permanecerem perfeitamente impunes, ricos e saudáveis? Onde a coerência profunda de um sistema como esse?

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De modo que Hamilton, naquele tom meio debochado de Bridges (o eterno "Dude" do Grande Lebowski, dos irmãos Coen) representa um Quixote, mas um tanto dividido. Um Quixote que duvida tanto dos moinhos de vento como de si mesmo.

Aliás, o desenho visual de A Qualquer Custo lembra muito o dos Coen de Onde os Fracos não Têm Vez, baseado em Cormac McCarthy. E lembra o mesmo cinismo dos diálogos no roteiro escrito por Taylor Sheridan.

A conversa final entre Bridges e Toby, na varanda do sítio, se recobre de muitas ambiguidades. Cada um deles sabe que o outro conhece a verdade. Não há como prová-la, no entanto. E a vida segue, como seguiu depois que os golpistas do mercado financeiro produziram o tsunami de 2008. Não existe ordem no mundo. Ou, pelo menos, não existe aquela ordem idealizada, na qual as leis são feitas para defender o cidadão e a Justiça acaba por prevalecer. Cada vez mais isso parece um conto da Carochinha.

E, se não existe ordem, no sentido absoluto, de que vale matar-se para impor pequenas correções, como prender um bandido menor que, afinal, quis apenas proteger sua família? Ou, como disse Brecht, o que é roubar um banco perto de fundar um banco?

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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