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Opinião|A História do Homem Henry Sobel

 

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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 Foto: Estadão

 

 

 

 

 

 

A História do Homem Henry Sobel, de André Bushatsky, traz basicamente três aspectos da vida do rabino. Primeiro, o religioso moderno que, com sua chegada a São Paulo em 1970, cabelos compridos, quipá cor de vinho e atitudes ousadas, deu nova vida à Congregação Israelita Paulista (CIP). Depois, o homem corajoso, à altura de um momento crucial da história brasileira, o do assassinato do jornalista Vladimir Herzog pelos órgãos de repressão da ditadura, em 1975. Por fim, o fait divers: o furto de algumas gravatas numa loja de Miami, fato explorado à exaustão, que quase acabou com sua credibilidade.

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Através de uma longa entrevista com o próprio rabino e depoimentos de parentes e amigos, que o conhecem ou testemunharam sua trajetória, reconstrói-se o perfil de um personagem. O filme tem, claramente, sentido reparador. Mas vamos por partes.

De longe, o melhor segmento é o segundo, a trágica morte de Herzog, então jornalista da TV Cultura, nos porões do Doi-Codi. Convém lembrar aos muito jovens que, na versão oficial, Herzog foi declarado morto por suicídio. Na foto divulgada pelo órgão de repressão, o corpo aparece enforcado por um cinto preso a uma janela. Para se matar, teria de dobrar os joelhos. A versão é tão ridícula que só poderia ser apresentada no quadro de uma rígida ditadura militar.

Pela tradição, Herzog, se suicida fosse, teria de ser enterrado na periferia do cemitério. É o que manda a lei judaica. Ora, Sobel enfrentou a pressão e enterrou o corpo do jornalista no centro do cemitério, em sua "área nobre", como diz. Era uma forma direta de dizer à sociedade que houvera um crime e não um suicídio. Dias depois, em companhia do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns e do pastor James Wright , Sobel celebrou uma missa ecumênica por Herzog na Catedral da Sé, acompanhada por oito mil pessoas.

Sob um clima repressivo, com a praça cercada e tomada por agentes da repressão, o ato é hoje considerado um ponto de viragem no processo de redemocratização brasileira.

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Nascido em Portugal e criado nos Estados Unidos, esse rabino de sotaque pesado e incorrigível teve papel protagonista nesse momento delicado da história do Brasil. Esse é o grande momento da sua vida e bastaria para inscrevê-lo na memória coletiva de um país que a cultivasse.

No entanto, todo esse capital simbólico acumulado pareceu esvanecer-se quando, cedendo a não se sabe que impulso, Sobel furtou três ou quatro gravatas numa loja de departamentos de Miami. Foi descoberto e o escândalo se fez. Boa parte do filme é dedicada a esse evento que, bem pesado e medido, seria uma poeira, um cisco, um nada em biografia tão importante quanto a de Henry Sobel.

O espaço concedido ao episódio talvez seja sintomático do tempo em que vivemos. O acessório toma o lugar do principal. Pequenos deslizes ganham dimensão enorme e justificam linchamentos morais. Uma trajetória complexa e rica é medida pelo factoide, desde que este tenha valor mediático de mexerico, enquanto o principal é varrido para o esquecimento. Fatos ínfimos da vida íntima têm mais valor que os grandes acontecimentos da História.

Por outro lado, parece compreensível a preocupação do diretor em não esconder o fato. Se o tivesse omitido, pareceria ter feito uma hagiografia do personagem. O erro, talvez, tenha sido o de super dimensioná-lo, exatamente como fez a mídia sensacionalista, só que no filme com o intuito de compreender o ato e não de explorá-lo. Ou devolvê-lo à sua verdadeira dimensão. Para mostrar quão pequeno é o episódio, gastou-se um espaço enorme, o que é uma contradição.

Afora essa questão de estrutura, o documentário se ressente de um formato tradicionalista demais. Entrevista com o personagem, câmera parada, depoimentos de sentido único, ainda que de pessoas muito inteligentes e importantes (Eva Blay, Juca Kfouri, Ivo Herzog, filho de Vlado, Anitta Novinsky, Audálio Dantas, entre outros). A mesmice visual soma-se ao tom monocórdio dos depoimentos, produzindo uma impressão de monotonia. Personagem tão multifacetado como o rabino Henry Sobel merecia tratamento cinematográfico mais inovador e ousado.

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Cotação: REGULAR

 

Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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