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Opinião|A ascensão do Maioral: Ali

 

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Foto do author Luiz Zanin Oricchio
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Essas linhas estão no livro O Rei do Mundo - Mulhammad Ali e a Ascensão de um Herói Americano (Cia das Letras), um dos belos exemplares do jornalismo literário voltado para a atividade esportiva. Nele, Remnick, editor da revista New Yorker, refaz o início da carreira de Ali, situando-a primeiro num ambiente pugilístico antes dominado pela Máfia; depois, na fronteira de tensões religiosas, raciais e políticas que caracterizaram os Estados Unidos nos anos 1960. Anos do assassinato de Kennedy, das lutas pelos direitos civis de Martin Luther King e Malcolm X, da Guerra do Vietnã, dos Beatles e dos hippies.

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É muito fácil fazer uma prosa elegíaca de Cassius Marcellus Clay que, depois de convertido ao islamismo, mudou seu nome para Muhammad Ali. A maior parte dos entendidos considera que foi o maior peso-pesado de todos os tempos, superando de longe Joe Louis e Rock Marciano. Ali dançava no ringue, falava sem parar antes e depois das lutas, compunha versos provocativos ao adversário, previa em que assalto colocaria o outro a nocaute. Dentro das cordas, tinha a pegada de um gigante e a leveza de uma borboleta. Flutuava com um beija-flor e picava como abelha, como ele próprio dizia.

Protagonizou lutas memoráveis com as que fez contra Sonny Liston, Floyd Patterson e George Foreman. Exibia um repertório completo de golpes. Além disso, era bonito como um deus e dispunha de um ego à altura de todas essas qualidades.

No entanto, Remnick prefere passar ao largo das mitificações. O que Ali fez em sua carreira já é suficiente para colocá-lo no alto do panteão, sem ser preciso aumentar nada e nem usar hipérboles. Daí fazer a crítica de hagiografias como The Greatest (O Maior), autobiografia de Ali redigida por Richard Durham. Nela consta, por exemplo, que o jovem campeão olímpico teria atirado sua medalha de ouro no rio Ohio ao ser molestado por um bando de motoqueiros brancos.

Isso nunca aconteceu e o próprio Ali, que supostamente teria ditado o livro a Durham, dela não se lembrava. Remnick prefere ficar mais no factual. E também no interpretativo, o que sempre depende da compreensão histórica dentro da qual fatos adquirem sentido.

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Por isso, para chegar a Ali, recorda das lutas entre Floyd Patterson e Sonny Liston, com o primeiro representando o "negro bom" e o outro, o "negro mau", saído dos presídios, com sua cara de poucos amigos e hábitos ainda menos recomendáveis. Era uma dicotomia interessante àquela altura da história dos EUA.

No entanto, quando Clay, já se aproximando da Nação do Islã, de Elijah Muhammad, desafia Liston, os papéis trocam de lado. Afinal, Liston, ainda que tivesse passado criminal e inspirasse pouca confiança, era preferível a esse jovem falastrão, próximo de um grupo que considerava toda a raça branca como inimiga.

Os dois pontos altos do livro são as narrativas dos combates entre Liston e Ali, em 1964 e 1965. É um texto fascinante, que mantém o calor descritivo e termina por uma coda analítica. Mesmo porque, após essas vitórias, Ali se tornaria não apenas o principal nome do pugilismo, em torno do qual todos os outros lutadores do futuro gravitariam, mas uma personalidade do século.

Naqueles anos políticos, Ali recusou-se a servir no exército e lutar no Vietnã, sob a alegação simples de que "nada tinha contra os vietcongues". Sua licença foi cassada e ficou três anos e meio sem lutar. Só recuperaria o cinturão na mitológica luta contra um muito mais jovem e forte George Foreman, no Zaire, em 1974. Já então era um mito. Mas do qual, Remnick procura extrair o lado da humana fragilidade em suas páginas finais.

Entrevistando um Ali doente, quase paralisado pelo Mal de Parkinson que, após a entrevista o acompanha até a porta e pergunta ao jornalista se aquele era seu carro. Ante a resposta positiva, apenas comenta, à guisa de despedida: "A gente não possui nada. Você é apenas um depositário nesta vida. Cuide-se bem".

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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