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Opinião|8 1/2: Fellini conta a história, e ela fala de você

Amigos, escrevi esse side sobre Oito e Meio para acompanhar uma reportagem sobre o filme Nine.

Foto do author Luiz Zanin Oricchio
Atualização:

8 1/2 tem um dos finais mais estupendos ? e surpreendentes ? da história do cinema. Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), o cineasta em crise, dirige, ele próprio, a cena de sua vida, a ciranda na qual entram todos os personagens que viveram em conflito ao longo da sua história. O pai, a mãe, as diversas mulheres, o produtor, a igreja, as prostitutas, amigos e desafetos. Tudo se concilia, ao som de uma das fabulosas marchinhas circenses de Nino Rota.

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Esse desfecho é uma epifania. Expressando o que sentia Fellini (Guido Anselmi não é mais que seu alter ego), vai ao encontro do sentimento mais íntimo do espectador. Afinal, quem já não sonhou em juntar pessoas e situações absolutamente inconciliáveis? A esposa e a amante. O pé no chão e o direito de sonhar. O resgate da figura materna e a pacificação com o personagem paterno. Pergunte a um psicanalista e ele dirá que essa soma de impossíveis vive, como desejo, no fundo do inconsciente de cada um. Por isso Fellini, com seu 8 1/2, toca tão fundo. A poucos filmes se aplica tão bem a frase latina de Horácio ? "De te fabula narratur". A história fala de você.

Fala, claro, de todos nós, pois essa é a universalidade da grande arte. Mas fala, também e especificamente, de uma situação vivida por Federico Fellini, e que qualquer artista enfrenta em determinado momento da sua trajetória ? o chamado bloqueio criativo. Àquela altura do campeonato, Fellini havia dirigido um longa em parceria (Mulheres e Luzes, sua estreia, com Alberto Lattuada), seis longas-metragens-solo e dois episódios em filmes coletivos (O Amor na Cidade e Bocaccio 70). Em 1960, lançou uma das suas obras-primas, A Doce Vida, Palma de Ouro em Cannes, sucesso e escândalo mundiais, filme dos filmes, definitivo retrato de uma época e uma mentalidade.

O que fazer depois, sem a sensação de se repetir? Desafiado, Fellini cava em si mesmo e leva para a tela fantasmas e lembranças de infância, juventude e maturidade. Projeta essa memorialística imaginada em um personagem criado à sua maneira. Refaz sua história (real) através da ficção e sai da crise criativa... com o mais criativo filme de todos os tempos. Golpe de gênio. Fellini é como um faixa preta em judô que faz a força do oponente voltar-se contra ele próprio. Um detalhe engraçado é que os produtores queriam que ele separasse em cores e preto e branco as cenas da realidade e da fantasia ? para que o público as distinguisse. Fellini recusou. Para ele, os dois níveis da experiência humana eram equivalentes. Sonhar também é viver.

(Caderno 2, 20/1/10)

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Opinião por Luiz Zanin Oricchio

É jornalista, psicanalista e crítico de cinema

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