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Cultura, dívidas e dúvidas. Normal?

o que não se deve, gente?

Quando vi suas fotos pipocarem nas redes sociais, gelei e falei para mim mesmo, "ah, meu Deus, o Prince não". Mas dito e feito. Foram só mais uns cliques e o desagradável, o inominável, aquilo-que-você-não-quer-ler-nem-ouvir-falar começou a se repetir. Uma ladainha. "Encontrado morto em sua casa, etc. e tal, causa mortis não divulgada, blábláblá, a família pede que se respeite a privacidade".  E lá vamos nós para mais um dia de bizarria.

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Por Redação
Atualização:

Cinzas do meu gatinho Nirvana Foto: Estadão

A morte de astros, estrelas, ídolos e celebridades geralmente é traumática por ser pública, universal, compartilhada e significante. Só que algumas nos atingem mais pesadamente por se anunciarem em letras garrafais, diariamente, claramente e, no entanto, ninguém fazer absolutamente nada para evitá-las, exceto documentar a via crucis. Entre elas, a de Kurt Cobain (1994) que, em turnê pela Europa que dava para acompanhar pelas manchetes de jornais estrangeiros, vinha desmaiando no palco e tendo overdoses seguidas. Depois, a de Michael Jackson (2009), um menino já quarentão e estranho que, para coroar uma trajetória cada vez mais surreal, prometeu algumas dezenas de shows que lhe exigiriam um vigor físico que era óbvio que não tinha mais. Finalmente a de Amy Winehouse (2011), a cantora e compositora extraordinária recentemente focalizada em um documentário onde se mostra que, bem antes de gravar Back to black, o disco que a transformaria em mega-ultra-tera-star, a cantora já estava um trapo, sem condições físicas ou psicológicas para qualquer coisa.

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Prince era um outro tipo de esquisito. Quieto, aparentemente. Socialmente transgressor. Uma figura. A net está cheia de momentos divinos dele. Mas também pode ser visto todo machinho tocando o solo de While my guitar gently weeps, ao final do qual faz a guitarra desaparecer sob o olhar maravilhado de Dhani, filho de George Harrison. O Beatle, autor da música, havia acabado de falecer. Era uma homenagem, um clima de constrangimento, mas Prince mandou ver do mesmo jeito. Ou em outro momento mico de sua carreira, ao ser chamado ao palco por James Brown em pessoa. Pouco antes dele, Michael Jackson, que havia lançado ou estava lançando Thriller, se desfez em mesuras diante do Godfather of soul. Prince, como uma prima dona, pede uma guitarra, não toca nada, arranca a camisa, tenta sensualizar, se agarra em um poste cenográfico e despenca na plateia!. Parece cena d'Os trapalhões. Mas deixa para lá. Foi sem querer.

Prince era meu "amigo". Fazia aniversário no mesmo dia que eu. E eu conheci a estonteante Sheila E, cantora de sua banda, antes dele! A sobrinha do percussionista do Santana, Coke Escovedo (daí o E), veio com a banda de George Duke no São Paulo-Montreux Jazz Festival de 1978. Conversei com ela. Tinha mãos ásperas de bater tambor. E por falar em Montreux, Prince fez uma de suas últimas grandes apresentações lá em 2013. Gal Costa, Claudia Leite e a banda da minha filha se apresentaram no dia 12 de julho na Sala Stravinsky. Prince nos dias 13, 14 e 15. Sozinho com sua banda, sem show de abertura como todos os outros. Foram as primeiras noites a ter ingressos esgotados com meses e meses de antecedência. Para se ter uma ideia do tratamento que recebeu, Leonard Cohen, que era o homenageado do ano no Festival, fez dois shows apenas. He's back diziam os cartazes, referindo-se à apresentação anterior em 2009, quando apresentou uma canção em homenagem às seculares vinhas de Lavaux. Ou quem sabe referindo-se à sua carreira mesmo.

Estreia em Montreux Foto: Estadão

Seja como for, agora he's gone. E naquele dia de bizarria em meio àenxurrada de notícias sobre sua partida li alguém dizendo que Prince "muitas vezes sabotou a carreira..." Opa! Mais que depressa um alarme tocou na minha cabeça. Era exatamente isso o que diziam de Itamar Assumpção. Mas desse eu estava perto. Itamar ficou famoso por dizer não às maiores gravadoras, redes de televisão, jornais e revistas e demais partes "interessadas" nele. Entre as "grandes" ofertas que Itamar recebeu fiquei sabendo de algumas como deixar a banda (Isca de Polícia) de lado para aparecer em musicais de acrílico dublando e tocando violão ou então conselhos para se dedicar ao samba, ao pagode, porque "era mais coerente". Coerente com o que, me perguntava? É claro que não dá para se comparar um mega star mundial como Prince com um artista alternativo brasileiro. Mas as atitudes do americano não ficaram a dever às malcriações do meu amigo, que faleceu em 2003 sem jamais ter se "rendido". A exemplo de Corisco. Prince foi o máximo nesse sentido. Quando a gravadora Warner Bros. mostrou-lhe que era dona de tudo que trazia e que trouxesse seu nome, Prince, o que fez? Simplesmente mudou de nome e escolheu um símbolo indecifrável e portanto impronunciável. Passou a referir-se a si próprio como "o artista originalmente conhecido como Prince". E a sua vida nunca mais foi a mesma. O artista.

No Songbook Pretobrás dedicado à obra de Itamar, coordenado por Mônica Tarantino e por mim, o jornalista e pesquisador José Ramos Tinhorão se compara ao focalizado apresentando-se como um marginal. "No sentido de estar a margem". Para ele, a produção tecnológica mudou tudo, "a variedade de suporte é tamanha que prescinde de conteúdo criativo". E continua. "Antigamente a gente via um artista na rua. Apontava: 'olha o artista!' Hoje a aura acabou". E Tinhorão conclui, "diferente dos ídolos disciplinados, (Itamar) conseguia dar uma aura a seu trabalho". Prince também.

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Songbook bacana Foto: Estadão

E é nessas que esse negócio de "sabotar o próprio trabalho" soa esquisito. As pessoas meio que se esquecem que no "peito dos desafinados também bate um coração", como rezou a dupla Jobim-Mendonça. Parece que existe um caminho só e quem estiver fora do caminho, quem não enxergar esse caminho, está desgarrado, abandonado à própria (falta de?) sorte. E é bom lembrar também que, além disso, além da "arte", o que mais une pessoas como Itamar ou Prince, ao lado e da criatividade e da "vontade" da "necessidade" do novo é o destemor diante do estabelecido. O consagrado. Em suma, a gente não pode temer. Não deve temer.

Inventa, conserta, elege outras formas. Temer, jamais.

 

 

 

 

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