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Cultura, dívidas e dúvidas. Normal?

Nadando por São Paulo (conclusão)

He shouted, pounded on the door, tried to force it with his shoulder, and then, looking in at the windows, saw that the place Was empty.

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Por Redação
Atualização:

Continuando minha saga particular, cujo destino vocês ainda estão alheios, saí do Bixiga segui a 23 de maio, que vira Ruben Berta, que vira Moreira Guimarães, que depois do aeroporto vai virar Washington Luiz e lá no fim avenida Interlagos. Depois do Clube Sírio e da antiga boate Bambu chega a vez, no lado direito, de uma área que merecia figurar na minha História Universal da Infâmia particular. Ali ficavam, vizinhas, as casas da Marisa e da Bia. A primeira menina era uma morena, linda, segura, perigosa, com o indefectível grain de beauté. A outra de cabelos castanhos claros, era suave, tímida e, como não podia deixar de ser, usava óculos. Eu tinha 12 anos e um passarinho me contou que a Bia estava interessada em mim. Antes que tomasse alguma atitude, uma harpia entrou na frente e me aconselhou a tentar pedir a  Marisa em namoro. Devia arriscar. As aves naquele tempo falavam por Questionários de amor, o Facebook/Tinder analógico muito utilizado na pré-história - a moçoila comprava um caderno bonitinho, escrevia algumas perguntas e entregava para quem lhe interessasse que respondesse. E, para minha alegria e surpresa, a deusinha aceitou o meu pedido.

Olhando Foto: Estadão

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Foi o fim de ano mais catastrófico de minha existência. Estreei meu presente de Natal, uma guitarra Giannini Sonic vermelha que meu filho ainda usa, no aniversário da morena. E à frente do meu conjunto, The Modern's. Com apóstrofe. Eu na guitarra, quatro moleques que só cantavam desafinadamente homofonias inglesas sem sentido e Judas Iscariotes fazendo as vezes de baterista, espancando o assento de uma cadeira. Logo depois, como sempre, fui passar o revéllion com a família em Presidente Alves, cidade perto de Bauru, que nesse ano ficou incomunicável devido às chuvas intermináveis que transformaram a terra vermelha da estradinha em um lodaçal intransponível. Como meu pai estava de férias na Panair a família optou por ficar na cidadezinha uns dias a mais. Resumindo. Quando voltei a morena havia batido asas com o pretenso baterista - soube que foram vistos na matinê do cinema do nosso bairro, o Jurucê. Fui tentar puxar conversa com a menina de óculos e ela me mandou arder no inferno. Merecidamente. Só sei que até hoje quando passo por ali tudo fica em slow motion, em câmera lenta. Terra arrasada, ocupada por dois postos da Royal Dutch Shell e... a casa da Bia. Ela continua lá. Só ela.  Sombria, esquecida no tempo como o castelinho da mãe do Norman. Bates.

Do outro lado da avenida fica a Cruz Vermelha, desativada e paradoxalmente conservada como um hospital americano de filmes sobre a guerra da Coréia. Parece que William Holden e Jennifer Jones ainda estão lá. Nos fundos havia um pomar. Toda hora algum de nós era surpreendido pulando o muro, que dava para a avenida Aratãs, pelo zelador portando uma espingardinha. Seria de chumbinho? Dava tiros de sal? Nunca ninguém foi atingido para poder contar. Eu nunca vi a arma e hoje considero que tudo não passava de lenda urbana.

Vendo Foto: Estadão

Os fundos da estação de telefonia, telegrafia e rádio da Panair, com suas torres e antenas que assustavam a todos (espiões?), também davam para a Aratãs. O inesquecível Rony, o pequinês da minha mãe, fugiu dali meio cego aos doze anos para entrar na história. Meu pedaço. E dali até o viaduto sobre a Bandeirantes são só memórias (ver Coincidências de 18/5/2016), como as corridas de carrinho de rolimã na avenida Moaci - o Karoli's Klub, sempre a apóstrofe! - ou a vez em que, voltando do bar em frente do aeroporto de Congonhas daquele jeito, dei de cara às três da manhã com um grupo de gaudérios vindo em minha direção. Todos usavam bombachas negras, camisas brancas, lenços vermelho, botas com esporas e facões na cintura! Pensei comigo, "pronto, estou alucinando, me aplicaram um 'boa noite cinderela!'" Mas eles tanto existiam que me cumprimentaram epassaram rindo. Mais tarde fui saber que eram os garçons da recém inaugurada churrascaria Fogo de Chão.

Seguindo em direção ao aeroporto pouca coisa mudou. A cabeceira da pista, o xadrez, continua lá - um comandante da Real Aerovias que morava no meu prédio, errou a trajetória de aproximação e bateu com o trem de pouso dianteiro de seu Constellation, a chamada bequilha, arrancando um pedaço do xadrez que demorou para ser consertado. Durante semanas ficou um remendo ali. Ele até que se vangloriava um pouco disso. Figura. Tinha um carro Hudson, modelo Hornet, azul claro e capota de plástico preta; usava foulard e vivia levando mulher para o prédio onde mantinha a paz trazendo uma muambinhas das viagens internacionais. Calças Lee para a molecada, blusas de Ban Lon para as donas de casa e cortes de tecido impermeável Dracon, ideal para ternos, para os cavalheiros. Era o Don Draper do pedaço.

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Enxergando Foto: Estadão

ABRE parênteses.

Meu bairro, oficialmente chamado de Indianópolis, zona fronteiriça entre o Planalto Paulista, Aeroporto, Campo Belo e Moema, era um lugar pacato até a chegada dos Caravelles franceses. De linhas elegantes, ele foi o primeiro avião a jato comercial da história, com duas turbinas coladas na parte traseira da fuselagem que faziam um barulho insuportável - Roger McGuinn dos Byrds fala desse som e de sua influência sobre as escolhas musicais da geração dele (os baby boomers) na contracapa do LP Mr. Tambourine Man. Congonhas era chique mas ficou pequeno diante dos monstrengos voadores que foram aparecendo. Com a transferência do aeroporto internacional paulistano para Cumbica - Guarulhos, liberou-se o gabarito residencial daquela área e Moema virou aquela shit que todos conhecemos.

FECHA parênteses.  

Agora antes de chegarmos ao aeroporto há um memorial dedicado às vítimas do trágico, lamentável, horrendo acidente de 2007. Uma praça seguida de predinhos que já estavam lá quando eu estudava no J.E.C. Branco (Jardim Escola Coelhinho Branco). Eu não ia para escola pela Moreira Guimarães não. Ia em linha reta, por dentro. Atravessava a pinguela do córrego da Traição, atual avenida Bandeirantes, e seguia margeando a série de chácaras onde já passava a avenida Aicás. Uma das minhas mais queridas imagens de infância são aqueles vetores de irrigação girando sendo sobrevoados por aviões Douglas DC-3 que se preparavam para aterrissar. Fisicamente o aeroporto é igual mas, por exemplo, a elegantíssima barbearia em frente à então ala internacional, que tinha entre seus funcionários-artistas um barbeiro chamado Shakespeare, fechou há muito tempo. Assim como o salão de festas no último andar do aeroporto, local do badaladíssimo Baile do Clube Arakan, que nos anos 1950 reunia "as mulheres mais belas da cidade". Décadas mais tarde, em sua versão pornô na avenida Vergueiro, virou o pièce de résistance do jornal então popularesco Notícias Populares - perto da televisão aberta de hoje em dia até que a publicação era tímida.

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Sacando Foto: Estadão

Fiz a curvinha para a direita, passei em  frente ao outrora inexistente Túnel Paulo Autran, passei pelas avenidas outrora importantes Vieira de Moraes, que vem da Santo Amaro, e Jesuíno Maciel, que vai, e lá se foi o meu bom humor. É que é impossível olhar para uma daquelas "ruínas instantâneas" sem sentir engulhos. Estou falando do "telefeérico do governador", que não liga nada a nada uma vez que não está pronto e já se encontra em franca deteriorização. O elefante branco sai dali e emenda com a avenida Jornalista Roberto Marinho em direção à Marginal.

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Atrás dele, na altura da Rua Tamoios, onde hoje fica um hipermercado, havia um estúdio de cinema, nos moldes dos estúdios da Vera Cruz. E ao seu lado um dos três clubes aquáticos que para mim sempre foram um mistério. Havia pelo menos três na cidade, pelo que eu sei. Pode ter havido outros. O do aeroporto, que não existe mais e eu via de longe; o da Aclimação, que eu morei em frente mas não frequentei; o de Pinheiros, do qual fui sócio como muitos da "geração vanguarda paulista", era conhecido carinhosamente como "bidezão". Aparentemente os três foram construídos pela mesma firma (?) que deve ter falido uma vez que encontravam-se abandonados quando foram assumidos pelas associações de moradores dos respectivos bairros. No meu tempo, todo mundo era sócio de algum clube. Uma coisa acessível, classe média. Nós frequentávamos o Clube de Campo Marajoara, bem mais adiante e dirigido por um certo capitão Noel, veterano de guerra, sei lá que guerra. O pessoal da Record era em sua maioria sócios do Marajoara. Lembro-me da Isaurinha Garcia de biquíni.

Ponderando Foto: Estadão

Seguindo a Washington Luiz agora era a vez da descida do buraco quente, uma favela, hoje a avenida Roberto Marinho. Bem no meio ficava uma boate, Moinho, uma cópia modestíssima do Moulin Rouge, mas com a mesma aura da Bambú antiga, cinematográfica - esqueci de falar que a própria TV Record era uma boate antes de virar Cirquinho do Arrelia, mas o nome dela eu nunca soube. Foi nessa ladeira da boate Moinho que meu pai caiu em um buraco com seu Dauphine, que teve de ser guinchado. Nós estávamos indo, eu, meu paie minha mãe, justamente para o Clube Marajoara, para alguma festa. Best sellers da montadora Willys Overland do Brasil os Renault Dauphine e  Gordini, este uma versão "mais potente", tiveram o apelido de "Leite Glória", um leite em pó cuja propaganda era "desmancha sem bater". Seguindo a subida, passei pela Joaquim Nabuco, outra rua que perdeu a importância. Ela é continuação da avenida Morumbi onde ficava o Colégio Meninópolis. E nela que ficava a farmácia Nossa Senhora Aparecida do seu Roque Petroni Jr., pai do G. que tocava comigo no The Quarrymen,  hoje nome de avenida.

Estava chegando ao meu destino naquele dia. Só faltava atravessar aquele complexo de viadutos, aquele espécie de ponte Millau, e subir o ladeirão do loteamento onde meu pai me ensinou a guiar. Chamo de Millau pela indiferença que ele estabelece em relação ao entorno e não porque as avenidas Vicente Rao ou a Cupecê guardem alguma semelhança com o vale do rio Tarn do sudoeste na França, atravessado pela verdadeira Millau. No alto da ladeira, a Washington Luiz quebra inesperadamente para a direita e em frente, seguindo o fluxo natural, a rua passa a se chamar avenida Interlagos. Essas avenidas formam o ápice de um triângulo recheado de mansões, entre elas uma que pertenceu a Angela Maria, em cuja base fica o Cemitério Congonhas onde repousam meu pai, minha mãe e minha avó materna - o meu avõ materno está no Cemitério São Paulo eos pais do meu pai em Mato Grosso. Reencontrar minha família era a minha atenção, desde o começo.

Se inteirando Foto: Estadão

Parece loucura mas não é. Assistindo a House of cards, Eleen Burstyn que vive a mãe da Claire Underwood (Robin Wright), disse algo como "depois o escritor norte americano" John Cheever, ninguém disse mais nada". O nadador, filme estrelado por Burt Lancaster inspirado no conto homônimo de Cheever, que devo ter visto em alguma Sessão Coruja de madrugada, sempre me impressionou. Um homem que resolve ir para casa a nado - quer dizer, de piscina em piscina no condomínio aonde vive. Luiz Zanin, em seu blog, escreveu sobre esse filme e o fascínio que ele exercedesde que foi lançado em 1968 (ver O nadador: enigma de uma vida, 5 de janeiro de 2010). A vontade de fazer como o personagem de Lancaster em São Paulo, ir decupando meu caminho, desencavando histórias, sempre foi um assunto para mim. A saudade da minha família era a desculpa que eu precisava para a minha jornada. As citações em inglês reproduzem a primeira e a última frase do conto de Cheever:

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Era um daqueles domingos de verão em todos em volta e estão dizendo, "eu bebi demais ontem a noite".

(...)

Ele gritou, esmurrou a porta, tentou força-la com o ombro e então, olhando pela janela, percebeu que o lugar estava vazio.

Elocubrando Foto: Estadão

O curioso é que chegueiao cemitério com um peso no coração, há muito tempo que não ia lá. Comprei flores do campo, as minhas preferidas, velas, pedi um balde d´água e fui. Qual não foi a minha surpresa quando encontrei o túmulo florido, com presentes.

Não há o que temer. Existe amor em SP. Temer jamais.

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