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Cultura, dívidas e dúvidas. Normal?

Fazendo o Donato

O lançamento de Donato Elétrico no Sesc Pompéia, em São Paulo, para mim funcionou como uma espécie de Baile da Ilha Fiscal, aquele que marcou o fim da monarquia, no final do século XIX. Foi um sábado exemplar. Jovens de todas as idades se encontrando. Os fãs da Banda Bixiga 70, que estava quase que completa no palco ao lado de músicos convidados igualmente jovens, se misturavam com figuras carimbadas como o maestro Laércio de Freitas e senhora, ele que tem arranjos em Quem é quem, disco de 1973 que inspiraria Cantar de Gal Costa, que surgiria no ano seguinte.

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Por Redação
Atualização:

O relançamento de Quem é quem, 40 anos mais tarde, produzido pelo jornalista Ronaldo Evangelista foi o ponto de partida para o encontro entre o músico lendário e seus seguidores, refazendo o caminho no sentido inverso. Da calmaria de Quem é quem à eletricidade de Donato Deodato (1973) e A Bad Donato (1970). Donato, o próprio e como sempre bem acompanhado por Ivone, a musa, estava feliz. Abriu um sorriso enorme quando sentiu o órgão Hammond e o sintetizador One Voice ao alcance da mão direita, e o Clavinet Hohner e o piano Rhodes, com caixa, da mão esquerda.

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Donato me é especial. Ele tem uma filha chamada Jodel, junção de seu nome com o da mãe, Patricia del Sausser. Eu tenho um primo chamado Jodel, filho de João e Delmira. Quando gravou no disco da minha filha, todos no estúdio o esperavam usando camisas vistosas como as que gosta de usar. Nesse dia almoçamos no Gato que Ri do Largo do Arouche, que eu jurava que não existia mais e, à noite, dividimos bananas à milanesa no Sujinho. Surfando na intimidade, após o show histórico perguntei-lhe por que costumava dizer "água!" antes de encerrar as músicas. Respondeu que copiou de um sujeito com quem tocou em uma banda latina nos Estados Unidos. Também não sabe o porquê. Fui para casa feliz.

Somos todos Donato Foto: Estadão

Acordei no domingo, aniversário de 52 anos do Comício da Central, o "baile da ilha fiscal de João Goulart", temendo ouvir as vozes de loirinhos cantando "Tomorrow belongs to me" sendo trazidas pelo vento. Mas foi o telefone quem se encarregou de me supliciar. Era o início de uma semana de idas e vindas a hospitais, serviços funerários e cemitérios da capital paulista. Foram duas perdas em seguida, duas mulheres, ambas derrotadas pelo câncer. Primeiro, foi uma tia querida, a Pachita, da família da minha mulher, jovem ainda. Em seguida foi a vez da Serena, filha mais velha do querido Itamar Assumpção, mãe de um moleque.

Como em algum filme europeu me sentia um personagem atordoado em um mundo de atordoamento absoluto, com pessoas de olhos arregalados buzinando e gritando em congestionamentos inúteis e tendo seus esgares reproduzidos nas telas planas das televisões dos bares. Um absurdo. Em meio à falta de assunto que permeia as longas esperas em ocasiões como essas, me vi falando que nunca havia prestado atenção ou sequer conseguido guardar a localização dos cemitérios-jardim para onde me enviaram, as fisionomias ou os nomes dos atendentes dos serviços funerários e congêneres que tive de percorrer. Nunca. Até que perdi meu pai, há seis anos. Desde então passei a enxergar tudo.

Ou seja, até praticamente ontem eu me portava igual a uma criança. Tudo o que eu temia e desconhecia enxergava desfocado. Tudo o que me significasse dor. A perda de um ente querido era blur. Morgue? Blur. Coroa de flores? Blur. Exatamente como esses seres buzinadores embandeirados sem a menor noção. Essas mulheres destemperadas. Esse vigor sem utilização prática, essa gritaria. Não sei qual gatilho me devolveria a razão como ocorreu com a perda do meu pai. Ou será que me bastaria entrar no meio da cacofonia e em um rasgo de lucidez fazer o Donato e gritar:

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- Água!

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