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Cultura, dívidas e dúvidas. Normal?

E toca a campainha

Imagina a cena: o Riviera dos plúmbeos tempos paralisado, toda a multidinha imóvel em meio à fumaça (antigamente ele tinha mesas no térreo e não aquele imenso balcão). Penumbra e um foco em dois bêbados discutindo sobre quem é melhor, John Lennon ou Paul McCartney? Papos fundamentais de fim (?) de noite que se estendiam até a campainha interior de cada um soar - ou o bar fechar mesmo. E o Woody Allen então? Dependendo do dia, consequentemente do signo dos palestrantes ou da fase da lua, "já foi melhor", "é um embusteiro", "está cada vez melhor" ou "faz sempre o mesmo filme". Eu gostava e gosto de tudo. Desde o ponto em que o trabalho ainda se chama Woody Allen's Fall Project - como ele lança filme todo ano, as revistas anunciam seus filmes assim mesmo, sem título, nas listas de lançamentos da temporada. Continuo sendo do tipo "não vi e gostei" quando falam do baixinho. Sou Allenmaníaco. Na mesa me chamavam de Márcia de Windsor, uma ex-vedete e atriz que ficou famosa como jurada "boazinha" do programa de calouros do Flávio Cavalcanti. Dava dez para todo mundo. Um dos linguarudos da época, acho que n'O Pasquim, chegou a dizer, "é claro que existe mulher-objeto, a Márcia por exemplo é um abajur!" E me chamavam disso. Não era para sair no braço?

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Por Redação
Atualização:

Mas, como dizia, o Woody Allen está aí de novo, agora com Café Society, filme em que alcança a proeza de fazer Steve Carell atuar sem fazer caretas. Já me falaram que é seu melhor filme em muitos anos. Mantendo o nível Riviera de discussão, respondo que é bom, mas não o melhor. Me lembra muito Meia noite em Paris, em que também deu uma de Pigmalião, só que em cima de Owen Wilson. No fundo, mais um daqueles filmes que dão uma geral sobre o assunto, no caso a época, com Zelda, Scott, Hemingway, Stein pululando, no caso de Paris, ou referências a Garbo, Bette Davis, Louis B. Mayer, Judy Garland, no caso de Café, com uma história de amor no meio. Salvo engano, Paris se tornou uma das maiores bilheterias de Allen.

Plim! Foto: Estadão

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Enfim, logo no começo de Café Society, o herói vai à Wilshire Boulevard e foi aí que soou a minha campainha interior. Essa rua é uma pedra no meu sapato. Uma pedra boa. A única vez em que fui a Los Angeles fiquei hospedado perto dela, em Westwood, e desde então a encontro em todos os lugares. Dos livros de Raymond Chandler aos de James Ellroy. Dashiell Hammett tinha um quarto no Beverly Wilshire Hotel onde se embriagava- e onde teria escrito The thin man. São perseguições de carro, tiroteios, corpos abandonados, muquifos e vivendas, tudo na Wilshire Blvd. Mesmo nas séries de televisão. Não me conformava. Como é que uma cidade daquele tamanho só tinha uma rua que merecesse destaque? Dando carona para um casal de angelinos (?), angelenos (?), ouvi do marido que "antes das freeways, a Wilshire ligava tudo". Ops.

O fato é que a Wilshire se juntou ao meu imaginário hollywoodiano, que trouxe de casa, para não falar de berço. Meus pais eram super americanizados. Super. Em parte porque meu pai entrou na Panair no ano em que casou, 1945, e a empresa havia acabado de se separar da Pan American, sendo totally american way. O "estágio" foi completado quando o transferiram para Goiânia, onde nasci e que pelo que meus pais diziam tinha mais americano que pequi. Tanto é que seus maiores amigos, que não conheci pois era um baby, eram uns tais Musgraves e uma certa Miçálma - só mais tarde fui entender que a mulher, uma missionária, se chamava miss Alma, como a mulher do Hitchcock. Para completar minha mãe se chamava Dinah, com H, como a adivinha da televisão ou, segundo meu pai, como a Dinah Shore. Cresci ouvindo uns nomes pelos quais me interessei, como James Cagney, George Raft e Paul Muni (gangsters do cinema) e outros que sempre foram uma incógnita, como Greer Garson e Franchot Tone. Uma das melhores lembranças de meu pai era a de um teco-teco pousando no aeroporto (seria Três Lagoas? Não lembro) trazendo apenas piloto e co-piloto. Eles vieram desde os Estados Unidos na base do pinga-pinga, pousa, decola. Como estava de serviço, meu pai foi trocar uma ideia com eles. Eram nada mais nada menos que Tyrone Power e Cesar Romero (acho que era ele o piloto), de quem ele já era fã! Vez por outra, lamentava ter perdido o autógrafo ou mesmo fotografado. Pois, escrevendo este texto, milênios depois descobri que é tudo verdade. Romero conta isso no youtube. Os dois, em férias no estúdio, voaram até a Argentina, onde conheceram o Perón.

Nossa, agora até eu fiquei emocionado. Mas, voltando ao Riviera, a gente costumava fazer listas, muito em uso hoje em dia no jornalismo moderno. Ou nas redes sociais cheias de correntes de amigos pedindo para postar a capa de um disco favorito, o cartaz de um filme - vale livros? Quando me perguntam sobre filmes, invariavelmente cito A hard day's night ou Little murders ou Catch 22. Os dois primeiros, Os reis do ié ié ié e Pequenos assassinatos, entram também na lista dos que mais assisti. E Ardil 22 me fez soar a campainha interna mais uma vez. Naqueles tempos etílicos, a gente também se embriagava de Godard, Bergman (aah, o final de Paixão de Ana...), Bertolucci, Pasolini, Fellini, Gian Maria Volonté, Elio Petri, Lina Wertmuller, entre outras marcas, ali do outro lado da rua, no Belas Artes. E entre os diretores da época, tinha o Mike Nicholls, de Ardil. No filme, o ator que fazia o protagonista, capitão Yossarian, é o Alan Arkin, que já havia conquistado a gente dirigindo e fazendo uma ponta bem histérico em Pequenos Assassinatos, peça de Jules Feiffer, que também estava na moda, ao lado dos quadrinistas Will Eisner e Guido Crepax. Detalhe: Ardil é anterior, mas passou antes aqui. E o Nicholls eu manjava de outros carnavais.

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Plim! Foto: Estadão

Sua estreia cinematográfica foi a adaptação da peça de Edward Albee, Quem tem medo de Virginia Woolf?,  que assisti na televisão em alguma sessão coruja. Adorava aquele filme não só porque mostrava as brigas entre Elizabeth Taylor e Richard Burton, "igualzinho" as revistas de fofocas sugeriam, mas também porque era em branco e preto, tinha "jogo da verdade" entre casais bêbados e baixarias típicas de classe média intelectualizada que faziam a nossa alegria, os alternativozinhos. O outro casal era interpretado por George Segal e Sandy Dennis. A uma dada altura, o personagem de Liz atira na cara do marido uma das malcriações que eu mais gosto: "se você existisse, eu te desprezaria". Fantástico!

O segundo filme de Mike Nicholls foi um marco. A primeira noite de um homem lançou de uma só vez o talento teatral de Dustin Hoffman, as harmonias incríveis de Simon & Garfunkel, a primeira MILF (acrônimo em inglês para "mãe de amigo que eu acho interessante"),que era Mrs. Robinson (Anne Bancroft) e Katherine Ross, musa do filme Butch Cassidy. O sucesso foi tão grande que a gente colocava uma separação entre esse filme e os que se seguiram.

O terceiro, o citado Catch 22, tinha um elenco estelar que incluía Anthony "Bates" Perkins, a estreia de Art Garfunkel como ator, Richard Benjamim (de O complexo de Portnoy, do livro de Philip Roth), Martin Sheen e, acreditem, Orson Welles. Jon Voight, que havia acabado de estrelar Midnight Cowboy com Hoffman, está perfeito como capitalista inescrupuloso e o texto, do livro de Joseph Heller que influenciaria M.A.S.H. também, uma delícia - há uma cena em que Yossarian (Arkin) se deita na cama no hospital militar para substituir um soldado ferido em combate que acabou de morrer. Ele não queria decepcionar a família do garoto que tinha vindo dos Estados Unidos para visitá-lo. Entra a mãe,Elizabeth Wilson de Pequenos assassinatos, olha para o capitão e diz: "meu filho está irreconhecível!"; e Yossarian responde - "é que eu não sou ele"; e ela, "meu Deus! O pobrezinho não sabe mais quem somos!": e cai no choro.

Para completar a estreia auspiciosa de Nicholls, veio Carnal knowledge ou Ânsia de amar, que alimentou noites e noites de papo no Riviera. Só podia, o roteiro era do Jules Feiffer. Um repeteco de Quem tem medo agora na geração sexo, drogas & rock'n'roll trazendo artistas top da época interpretando os casais. Os liberadinhos Jack Nicholson, explodindo na tela, e Ann-Margret, renascida após o filme Tommy, e os moderados Art Garfunkel, perfeito de hippie, e Candice Bergen, no auge da beleza. Naturalmente, a confusão armada no filme, que mistura amizade, liberação de costumes, lealdade, permissividade, sacanagem e pura bobeira serviu de carapuça para meio mundo em volta daquelas mesas. Em meio àquela fumaça, pedindo sanduíches Royal e esperando Juvenal, o garçom de humor imprevisível, trazer os aperitivos. Chegava uma hora em que não se distinguia quem estava em qual mesa, quem estava com quem naquele bar. Todos se falavam. Uma multidão.

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Plim! Foto: Estadão

Lembrei disso no domingo, quando uma multidão bem humorada passou em frente ao Riviera que, embora repaginado, conserva aquela aura dos tempos plúmbeos. A minha campainha interior fez Plim!

Bola pra frente. Não há nada a temer. Temer jamais.

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