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Cultura, dívidas e dúvidas. Normal?

Coincidências

Dizem que o Marechal da Vitória, como o empresário Paulo Machado de Carvalho era conhecido, tinha mania por dois números, 7 e 13. Quem sabe dessas coisas é o Tom Cardoso, filho de uma amiga minha, jornalista autor de um livro sobre esse homem que, ao mesmo tempo em que tornou a TV Record a maior referência do Brasil em termos de cultura, chefiou a delegação brasileira de futebol no bicampeonato, 1958 (Suécia) e 1962 (Chile). Assim, a rede que comandava, então chamada Emissoras Unidas de Televisão, era liderada em São Paulo pelo Canal 7, TV Record, e no Rio de Janeiro pelo Canal 13, TV Rio. No futebol, também havia essas manias/coincidências. Parece que as bolas chutadas nas partidas iniciais (ou seriam finais?) tinham o número 713 em algum lugar. Mas, como disse, quem sabe disso é o Tom.

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Por Redação
Atualização:

mi casa, su sueño Foto: Estadão

O apartamento em que vivi dos 3 aos 17 anos (opa!) fica na esquina da avenida Imarés com a alameda Moreira Guimarães (hoje chamada de Rubem Berta, 23 de Maio ou simplesmente Corredor Norte-Sul). Indo na direção Aeroporto (Congonhas)-Centro por esse corredor temos então a Imarés, a Miruna e a Moaci, onde meus avós maternos moravam, subindo na direção Moema-Jabaquara. O quarteirão onde ficava a Record (e as rádios Record, São Paulo e Panamericana, atual Jovem Pan) era delimitado pelas avenidas Miruna e  Moaci e as alamedas Moreira Guimarães e Itapechinga (atual Guaramomis), descendo no sentido Jabaquara-Moema. Chique não? Do meu prédio, olhando em frente, avenidas. Cortando, alamedas. A entrada principal da TV Record ficava na avenida Miruna, 713.

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Cansei de ver o Dr. Paulo, como os do bairro o conheciam, caminhando pelo bairro, careca, barrigudo, com as mãos atrás das costas, uma figura que me lembrava Hitchcock. Bicudo, também. E um indiscutível senso de humor por trás da cara fechada. Lembro-me de uma entrevista na televisão em que ele se gabava de ter empregados espertos. Contou um caso em que, ao se sentir desrespeitado ao telefone, grunhiu se apresentando, "o senhor sabe com quem está falando? Com o dono desta empresa!" Só que a pessoa não se deu por achada e gritou ainda mais alto, "e o senhor por acaso sabe com quem está falando?". Atônito o doutor balbuciou um "não" para ouvir do outro lado, "ainda bem" e o som do telefone sendo desligado.

Os canais do Dr. Paulo, em SP... Foto: Estadão

 

... e no Rio de Janeiro Foto: Estadão

Pois é, a paralela anterior à Imarés, em direção ao Aeroporto, simplesmente não existia. Era o córrego da Traição onde a molecada do parque municipal, que ainda está lá, brincava. Hoje nosso riozinho virou a delicada avenida dos Bandeirantes, corredor de caminhões que vem do interior de São Paulo em direção ao porto de Santos - anda de bicicleta lá para você ver! Um estupor. Mas graças à sua construção as comitivas oficiais que anteriormente desfilavam no meio da Moreira Guimarães agora davam uma volta enorme e subiam a Miruna para voltar à alameda original, fazendo uma curvinha estratégica, em que as personalidades ficavam ao alcance da multidão, quer dizer, das multidinhas, como diria o pai do comediante Paulo Silvino. Não é para me gabar, mas eu poderia ter dado um tapa nas costas do presidente De Gaulle! Um cutucão no príncipe Philip! Uma beliscada no imperador Haile Sellassie! Já pensou? Eu tenho um amigo da minha idade que, como eu, assistiu o Pelé jogar (no meu caso Santos e Palmeiras, 3X2, Pacaembú, 1961). Quando ele falou "que viu o Pelé jogar" na Jamaica, virou piada local, teve gente telefonando para os parentes irem rir do "brasileiro maluco e mentiroso". Imagina se alguém descobre em Kingston que quase encostei no Leão de Judá?

O bom senso me leva a crer que as primeiras emissoras de televisão ficavam em lugares altos por causa das antenas. A TV Tupi no Sumaré. A Record no Planalto Paulista. E o elenco principal que geralmente morava por perto devia ser beneficiário de algum acordo contratual. Preciso investigar. Só sei que meu dia a dia era estrelado. Toda hora dava de cara com o Adoniran Barbosa no bar da esquina da Miruna, de chapéu e gravata borboleta; assisti Ronald Golias discutir com Renato Corte Real de brincadeira, um festival de tiques e gagueira, na fila da padaria da Imarés; roubei o brucutu do fusca do Tremendão (essa, eu traduzo outro dia) na porta da rádio Record, Miruna; via o Carlos Gonzaga passar assobiando pela Moreira Guimarães, um genuíno cantor de rock que fez sucesso com a versão de Bat Masterson; fui vizinho tanto da Narizinho do Sítio do Pica Pau Amarelo, Edi Cerri que morava em frente de casa, quanto do Capitão 7, Ayres Campos, que morava na Guaramomis. Edi foi a Narizinho na versão de Júlio Gouveia, na TV Tupi, então Canal 3, que trazia a insuperável Lúcia Lambertini como Emília; o Capitão 7 de Ayres, um grandão que a exemplo do comediante Walter Stuart não usava dublê, foi o primeiro super-herói brasileiro, estrela da primeira série nacional, e tinha como fiel companheira Silvana, na vida real Idalina de Oliveira, ícone máximo das garotas propaganda. Ayres levava tão a sério o personagem que tinha o logo de seu herói gravado na entrada da porta de sua casa e pintado no porta malas do seu Hudson modelo Hornet, um carrão na época. Por coincidência ou não, era vizinho da Lourdinha Felix, uma das primeiras Xuxas, cujo irmão é meu amigo até hoje.

Silvana e 7 Foto: Estadão

Dias curiosos que me privaram, ou me livraram, de ver a televisão não como uma caixinha mágica, mas como um local de trabalho igual a qualquer outro. Mas é claro que essa proximidade do Olimpo causava inveja, uma coisa demais mesmo naquela época. E é até hoje. Explico. Um dos meus maiores orgulhos era morar perto da Isaurinha Garcia (ela, na Miruna). Na semana passada, assistindo às histórias-lembranças que Ignácio de Loyola Brandão conta em seu espetáculo Solidão no fundo da agulha entremeadas pela impressionante voz de sua filha Rita, assim que o jornalista mencionou o nome da musa cantora de Mensagem ("quando o carteiro chegou e meu nome gritou com uma caarta na mão...!) eu quase me levanto no teatro aos gritos de "ela era minha vizinha, era minha vizinha!"  Comentei isso com ele depois, mas na hora não tive coragem de dizer que também a vi de biquíni. No Clube de Campo Marajoara, no caminho de Interlagos. Mas aí são outros quinhentos.

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O negócio é que eu me havia programado para escrever sobre como a cultura em nosso país está sendo ameaçada, melindrada, encurralada literalmente. E eis que não mais que de repente me deparo com um texto do Loyola em que ele compara o que está acontecendo com as ações do Estado Islâmico que dinamita monumentos, quebra-os com talhadeiras na ânsia de torná-los irrecuperáveis, na esperança de fazer o mesmo com a cultura. Era a peça que estava me faltando. O estado islâmico, os iconoclastas literais. O que se há de temer. A gente não pode se tornar irrecuperável. Temer jamais.

O estopim foi aceso na pousada que eu e minha companheira estamos dividindo com minha sogra. Quartos mais ou menos distantes um do outro. O nosso é o 7. O dela é o 13. Como não?

Estava escrito Foto: Estadão

 

 

 

 

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