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Uma geléia geral a partir do cinema

Ufa, Gabriel!

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Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Voltei ontem de Brasília, ainda aturdido de tanta 'extraterritorialidade', tema da curadoria de Eduardo Valente - Cuba em construção, massacre de índios e de pequenos agricultores etc -, e à noite já estava na reinauguração do Teatro do Sesi, na sede da Fiesp, para ver o Peer Gynt de Gabriel Villela. No dia 12, Gabriel saiu do ensaio para minha festa de aniversário. O espetáculo já estava quase pronto, mas ele ainda estava 'cortando'. O ideal, para um espetáculo 'juvenil', era não ultrapassar 100 min. No programa da peça, Gabriel diz que Peer Gynt, o texto completo de Henryk Ibsen, daria um espetáculo de cinco horas. Cinco! Fui pesquisar e encontrei que Ingmar Bergman fez duas montagens integrais, a primeira delas com o jovem Max Von Sydow, e que Bergman foi pioneiro ao prescindir da trilha de Edvard Grieg para encher sua versão de cantos populares nórdicos. Muito interessante. Gabriel também prescinde da trilha de Grieg. Substitui-a pelos Beatles. Help!, Girl, Yellow Submarine, Lucy in the Sky with Diamonds, Strawberry Fields Forever e All You Need Is Love, com os acréscimos de Bohemian Rhapsody, The Windmills of Your Mind ( a canção tema 'oscarizada' de Crown, o Magnífico, a versão com Steve McQueen), Lapinha e Pierrô Apaixonado. Dizer que o Peer Gynt de Gabriel é deslumbrante, para os olhos e ouvidos, pode ser correto, mas não dá conta do seu significado nem importância. O mais incrível é que a sensação de extaterritorialidade prosseguiu comigo, em outra mídia e contexto. No programa, Gabriel define Peer Gynt como matriz fundadora da obra posterior de Ibsen, voltada à (re)fundação do indivíduo. Joseph Losey filmou Casa de Bonecas, Steve McQueen, em sua única experiência como diretor, O Inimigo do Povo. Há no YouTube uma versão reduzida, de uma dezena de minutos, de um Peer Gynt estrelado por Charlton Heston no começo da carreira dele. Peer tem algo de macunaímico na maneira como vai se descolando dos mundos que atravessa, mas não é exatamente o caráter, ou a falta de, que está em discussão como matriz criativa da identidade. Com os trolls, Peer, que sonha ser imperador, aprende que o importante é ser o que se é, e vira imperador de si mesmo, consagrado num asilo de loucos. Lembrei-me muito de Philippe de Broca, Le Roi de Coeur, Esse Mundo É dos Loucos, de 1966. Imaginai! A essência do teatro e, no fundo, de toda criação. O não pertencimento, essa sensação de estar (sempre) numa encruzilhada. Vivemos tempos de hiperindividualismo e amores líquidos. Que reste-t-il de nos amours? Peer Gynt morre no final? E se morre, qual é a próxima encruzilhada? Belo e provocativo como é o espetáculo - como? Eu ouvi direito? Provas e não apenas convicções? -, é atravessado por angústias existenciais e pelo sentimento de morte. Termina numa nota de melancolia muito delicada, muito sensível. Amei! Não é só uma das grandes montagens deste ano, mas uma das melhores, entre as que conheço, de Gabriel. E pensei comigo - lá vou eu fazer inimigos - que meu amigo está ficando solitário nesse teatro brasileiro de coletivos, de gostos e valores médios, como gosta de dizer (sobre o cinema) Júlio Bressane. Nada contra, mas Gabriel Villela é um encenador da estirpe dos maiores - Luchino Visconti, Patrice Chéreau. Ave, Gabriel! Sinto que a crítica de teatro não dá conta do que ele anda fazendo. Fica elogiando o figurino e dando esse tipo de prêmio - que é merecido, claro -, mas sem valorizar a autoria, o pensamento. A Tempestade, Rainhas do Orinico e Peer Gynt. Só as três últimas montagens de Gabriel abraçam o teatro, o mundo. Quando, no texto de apresentação, ele diz que o épico brechtiano começou a ser gestado nas peças de um autor realista e simbólico, mas dado a voos de imaginação, como Ibsen, o recado é muito sério. Há sempre bastante canto nas peças de Gabriel - em Peer Gynt. Mas há canto, e canto. Os atores soltam a voz como Brecht gostaria. Não 'interpretam' a música, no sentido de dramatizá-la, como se faz nos musicais tradicionais. A pegada é outra. Distanciamento crítico. 'Ave' não dá mais conta do que esse homem propõe. Ufa, Gabriel!

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