Não tinha visto Piripkura e, apesar dos esforços combinados da assessoria de imprensa e da produção, que me enviaram o link, estava esperando para ver no cinema. Vi ontem à tarde. Piripkura não se assemelha a nenhum outro filme recente sobre a questão indígena no País, e temos tido vários. Difere de todos. Talvez seja o melhor. Gostava muito de Andrea Tonacci, do homem como do artista. Era um gentleman. Gostava certamente mais do Tonacci de Bang Bang que do de Serras da Desordem, que fez comoção entre a jovem crítica. Carapiru virou emblema, esse índio que sobrevive ao massacre de sua tribo e leva uma vida errante, andando solitário pelas serras do Brasil Central, distantes milhares de quilômetros do lugar em que sua odisseia começou. Confesso que, talvez por um erro de avaliação, o filme me provocava mal-estar justamente pelo que os outros consideravam sua sacada de gênio. Carapiru é um enigma para mim, que não consigo penetrar na sua intimidade. No final ele se abre e fala, mas o diretor não traduz o que diz. Entendo que ali ele não é só Carapiru, mas a solidão e o isolamento, a própria marginalidade do autor. Captei, respeito, mas, no fundo, acho que Carapiru vira para o diretor uma marionete, como fo/é para o mundo. Quando Tonacci morreu, fui ao velório na Cinemateca. Caixão descoberto e eu fiquei ali parado, olhando seu rosto tão sereno, e acho que tendo essa conversa comigo mesmo. Pensei muito em Serras da Desordem depois de ver Piripkura. O filme de Mariana Oliva, Renata Terra e Bruno Jorge divide-se em duas partes. Na primeira, conhecemos Rita, desencendente de uma tribo/etnia ameaçada de extinção. O Brasil virou um País de ficção científica. Senão, vejamos. Rita fala um português prercário, vive na cidade com o marido. Mas ela tem dois parentes, tio e sobrinho, Pakyi e Tamandua, que vivem em condições primitivas na floresta. Carregam uma chama, e é a da exiostência de seu povo. Graças um tal acordo de interdição da terra indígena, o que resta do território dos ancestrais, cercado por fazendas e madeireiras, depende de que, a cada dois anos, a Funai possa provar que esses dois estão vivos. A segunda parte de Piripkura é sobre a busca por e o encontro com Pakyi e Tamandua. Se a busca tem algo de fábula, o encontro tem... Camadas? Magia, o sagrado. Se não fossem daquele jeito, Pakyi e Tamandua teriam de ser inventados. Dois indiozinhos pequenos que a nudez fragiliza ainda mais. Olham para a câmera como se fossem os elos perdidos e reencontrados de um outro mundo. Não serão? Nesses anos de mata, apoiando-se para sobreviver à caçada do negócio que quer avançar sobre suas terras, eles, de alguma forma, tornaram-se um. Tocam-se, abraçam-se, falam uma língua incompreensível que só por momentos pode ser traduzida, e mais até pelos gestos. Acender o fogo, voltar para a floresta. É uma coisa tão mítica, como se Pakyi e Tamandua encarnassem os espíritos da floresta, que só a resistência deles mantém vivos. Essa segunda parte de Piripkura me pareceu deslumbrante. Uma rara experiência antropológica, e poética. O filme está em cartaz. Preciso arranjar espaço no impresso para que fique o registro. Afinal, o Estado é um jornal centenário. A história do Brasil tem passado por suas páginas. Um filme como esse não pode ser excluído. E, sim, há um crédito para Rita Carelli. A filha de Vincent tem feito essa ligação, contribuindo para que diferentes focos sobre uma mesma questão - a sobrevivência do índio, com tudo o que significa e representa -, chegue até nós.