O TEXTO
Jandira e seu namorado Lúcio, ambos de 29 anos, vieram do Campo Limpo. Chegaram por volta das 3 da tarde no Centro, calibraram-se bebendo em algumas barraquinhas, assistiram a diferentes shows - em vários palcos da Virada Cultural - e, à meia-noite, levados por amigos, foram ver Cannibal Holocaust no Cine Olido. O filme é famoso pelas cenas de violência chocante. Jandira passou boa parte da sessão tapando os olhos ou escondendo o rosto no ombro do namorado. No final, aplaudiu bastante. Por que, se você não viu quase nada, era a pergunta inevitável? "Pela curtição", ela disse.
A Virada Cultural oferece várias alternativas de shows, mas também, cada vez mais, dedica espaço para o cinema. A programação deste ano privilegiou uma mostra Zé do Caixão, no Cine Windsor; o cinema catástrofe, no Dom José; o cinema para cantar e dançar, no Palácio do Cinema; alguns títulos cults, no CineSesc; e o cinema canibal na Galeria Olido. O aspecto mais positivo dessa seleção foi a tentativa de recuperar espaços perdidos para o cinema pornô. Deve fazer bem uns 20 anos, ou mais, que o Windsor, o Dom José e o Palácio do Cinema só exibem programas de sexo explícito, o que os credencia, sem discriminação, para bum tipo bem específico de público. A tentativa funcionou, em termos.
O próprio gerente do Dom José disse que o único dos 12 programas da Virada que lotou a sala foi justamente o primeiro - O Dia Depois de Amsanhã, de Roland Emmerich, de 2004, às 18h15. "Fomos instruídos para não autorizar a entrada de nenhum espectador 15 minutos depois do início da sessão. Muita gente chiou por causa disso." O pior desempenho foi o de "Aeroporto', que George Seaton adaptou do Best seller de Arthur Haley em 1970. O filme passou às 11 horas de ontem e a sessão foi para meia dúzia de gatos pingados, apenas. Em compensação, havia fila para ver Cloverfield - O Monstro, de Matt Reeve, às 16 horas de ontem.
Marco e seu amigo Luís estavam cheios de entusiasmo para assistir ao filme. !"Todo mundo diz que é muito legal, numa linha parecida com a de Distrito 9 (de Neil Blompkamp)." Ambos na faixa dos 20 anos, nunca haviam pisado no Dom José. "Essas salas de sexo explícito são podres", avaliam. Ambos consideram positivo o fato de assistir a um filme que consideram 'normal' num espaço tão contaminado. "Seria bom se todas essas salas fossem recuperadas. Ia ajudar a levantar o Centro da cidade, que é muito caído. Para todo lugar em que a gente olha só vê podridão. É um escândalo que São Paulo seja uma cidade tão suja."
De volta a Cannibal Holocaust. O filme cultuado do italiano Ruggero Deodato é considerado o precursor de A Bruxa de Blair. Mostra expedição cujos integrantes são devorados por índios antropófagos na Amazônia, os Yamamanis (para diferenciar dos Yanomanis). Há um culto a Cannival Holocaust (e a Deodato). Seu oficiante, na cidade, é o também diretor Carlos Reichenbach, que promoveu, há poucos anos (dois ou três), uma sessão do nfilme em seu cineclube, no CineSesc.
É muito diferente assistir a Cannibal Holocaust numa plateia de cinéfilos, como a de Reichenbach. Por mais insólito e até chocante que possa ser o filme, a galera segura a onda. No Olido, não apenas o público era desinformado como estava afim de diversão (apenas). Tudo era motivo de riso, mesmo que esse, eventualmente, fosse uma reação nervosa. A equipe que viaja ao Amazonas documenta tudo. A câmera está sempre ligada. Capta as imagens do assassinato, um a um, dos integrantes do grupo. Sobrem as imagens, como em A Bruxa de Blair.
Deodato teve a sacada para Cannibal Holocaust há mais de 40 anos. No cinema, onde as mudanças ocorrem com alta velocidade, o impacto do fdilme permanece inalterado, e isso é raro. Jandira fechava os olhos a toda hora. As cenas de estupro lhe pareceram revoltantes. Mas a revolta maior foi de seu namorado, Luís. Ele achou demais quando o pênis do herói foi decepado. "Puta filme sádico, meu. Eu, hein? Quero mais um show para curtir com a minha cachorra."