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Uma geléia geral a partir do cinema

O Ferroviário

Por Luiz Carlos Merten
Atualização:

Comecei meu sábado vendo, em DVD, 'O Ferroviário'. Me emocionei muito, mais até pelos defeitos do que pelas qualidades do filme. Não sabia, ou não me lembrava, que a Versástil usou uma frase minha na contracapa - 'Um grande filme do cinema italiano'. Onde escrevi isto? No 'Caderno 2'? No blog? Acho que um belo filme seria melhor. Um belo filme não precisa necessariamente ser grande. Será? 'O Ferroviário' é o que se pode considerar um exemplar de neo-realismo tardio. O movimento que revolucionou o cinema italiano, após a 2ª Guerra, já estava mudando quando Pietro Germi fez seu filme. Jean Tulard diz, em seu verbete sobre o diretor no 'Dicionário de Cinema', que ele começou com dramas sociais que não deixaram boa lembrança. Ah, os críticos... O próprio Germi faz o protagonista, este ferroviário que conduz trens e que no início se julga alguém, importante, justamente pela função que desempenha. Um homem que tem família, amigos, que enche de vez em quando a cara no bar, que já maltratou a mulher, mas é, no limite, um bom homem. Seu mundo vai cair. Os filhos, o emprego, tudo cai por terra. Ele vira fura-greves, perde o respeito de todos e, o que é pior, o próprio respeito. Mas o filme não termina aí. É a história de como este homem readquire sua dignidade, de como a família se reconstrói. O narrador é o filho mais novo, um garoto com o qual Pietro Germi queria reinventar (ou homenagear) o Enzo Staiola de 'Ladrões de Bicicletas'. Embora seja uma criança, ele, mais do que ninguém, tem a visão do que é esta família. Chorei tanto que fiquei com medo de me desidratar. A família é um tema universal, mas ninguém faz filmes sobre a família como os italianos. Visconti ('Rocco'), 'Monicelli ('Parente É Serpente'), Germi. Poderia ficar falando horas sobre os personagens. O ferroviário, magnificamente interpretado pelo próprio Germi (nunca o esqueci em 'Caminho Amargo'/La Viaccia), de Mauro Bolognini). A mulher sofredora e resignada. O filho vagabundo. A filha infeliz no casamento. Ela é interpretada por Sylva Koscina, atriz iugoslava que fez carreira no cinema italiano por volta de 1960. 'Mulheres Perigosas' (Comencini), 'As Bonecas' (Le Bambole). Sylva Koscina era maravilhosa. Lembro-me de 'L'Assoluto Naturale', que ela fez com Bolognini e eu vi na Cinemateca Uruguaia (acho, a menos que tenha me enganado, que o filme nunca estreou nos cinemas brasileiros). Bolognini filmou aqui, talvez, as cenas eróticas mais fortes de sua carreira, mais do que o incesto de 'Agostino', com Ingrid Thulin. De repente, vendo 'O Ferroviário', não era só o filme que via. Fazia 1001 pontes com os integrantes de sua equipe. Saro Urzi, o amigo, que fez depois o pai de Steffania Sandrelli em 'Seduzida e Abandonada', do próprio Germi. A trilha de Carlo Rustichelli, grande compositor do cinema italiano. Fiquei tão tocado que revi, em DVD, partes de 'Rocco e Seus Irmãos' - o diálogo de Rocco e Nádia, quando ele, soldado, a encontra saindo da cadeia; a festa da comemoração da vitória de Rocco, com a chegada de Simone e a desintegração da família. O que mais me tocou foi a frase, várias vezes repetida, para o menino de 'O Ferroviário' - 'Quando for grande, você compreenderá.' É o que Ciro diz para Lucca, explicando porque chamou a polícia para prender Simone, que matou Nádia, no clássico de Visconti. 'Quando crescer, você compreenderá.' Há filmes que crescem (e amadureecem com a gente). Tinha 16 anos quando vio 'Rocco' pela primeira vez. Não sei quantos anos tinha ao ver 'O Ferroviário'. Tenho 60 anos. Revejo estes (e outros) filmes e sempre descubro alguma coisa nova. É isso a arte. Não tem receita, não tem fórmula. Somos nós, recriando no inconsciente o que o artista (o diretor) nos propôs. Aos 16 anos, tinha uma visão limitada. Hoje ela é mais ampla e, espero, generosa. Já estava bem comigo mesmo, mas aí fui ouvir o CD que comprei na Espanha, com as trilha de Resnais. 'Hiroshima, Meu Amor', 'Stavisky'! Depois disso, não vi mais nada (um pouco de TV paga). Só li no meu sábado, com medo de estragar tantas (e tão indeléveis) emoções.

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